‘Ideia de classe tem a ver com acesso e privação ao conhecimento’, diz vencedora do Prêmio Capes 2020

Conheça a doutora em biologia, Ayane Paiva

Por Luana Lisboa

Aos 11 anos, Ayane de Souza Paiva já parecia saber exatamente o que queria ser. As lembranças remontam à Escola Edgard Borba, colégio particular em Cajazeiras, que até hoje está em funcionamento. Ela lembra de folhear o livro de ciências da 5a série, se dirigir à professora e dizer que queria ser aquilo ali. “Não sabia o que era de fato mas sabia que era com aquilo que eu queria trabalhar quando crescesse. Ao passar pelo ensino fundamental II e ensino médio, conheci a biologia e tive certeza que amava a área”.

Crescida na periferia de Salvador, Ayane uniu o amor pela biologia celular e a noção em temas sociopolíticos para escrever a tese de doutorado vencedora do Prêmio pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). “Princípios de design para o ensino de biologia celular: pensamento crítico e ação sociopolítica inspirados no caso de Henrietta Lacks” foi uma das duas teses premiadas na UFBA em 2020. A outra tese foi o da também bióloga Jaqueline Goes, a quem Ayane não conhecia até o resultado sair. Mesmo assim, fez questão de a felicitar. “Depois do prêmio mandei mensagem pra parabenizar ela e dizer o quanto fiquei feliz de receber o prêmio ao lado dela, e muito feliz por sermos ambas mulheres”. A Agenda tentou contato com Jaqueline, mas não obteve sucesso até o fechamento desta reportagem.

Vida e tese
O pensamento ativista a motiva dentro e fora da pesquisa. Ela conta que foi esse um motivos do seu interesse no caso da Henrietta Lacks, a professora que nomeou seu trabalho. “Henrietta foi uma mulher negra nascida nos Estados Unidos que, nos anos 50, desenvolveu câncer do colo de útero. Em meio ao cenário segregacionista, ela conseguiu tratamento no Hospital John Hopkins. O problema é que nessa época, o que médicos e cientistas faziam com as mulheres era utilizar as células do colo de útero delas para pesquisas de causa e cura do câncer sem que elas tivessem conhecimento sobre isso, portanto sem que pudessem consentir”.

As células de Henrietta, diferentemente de outras amostras, deram resultados e trouxeram um enorme avanço científico para a época. Mas o caso trouxe à tona o debate ético sobre o poder da biomedicina em torno do corpo das mulheres e, principalmente, das mulheres negras. A tese premiada da Ayane gira em torno do ensino de uma biologia mais humanizada para alunos de ensino médio. Seu objetivo era fazer com que os estudantes projetassem ações sociopolíticas transformadoras em situações desiguais. Isso se relaciona, também, à história de vida da professora.

Nascida em Maceió, Alagoas, veio para Salvador com a família aos 9 anos e, por isso, se considera baiana. “O motivo de eu dizer que sou baiana é a minha compreensão de que eu sou aquilo que me identifico. Formei minha identidade em Salvador, minha forma de ver o mundo, o modo como me comunico, meu sotaque, amigos, minhas raízes foram firmadas aqui”. Na Bahia, veio morar em Cajazeiras. Lembra ter enfrentado muitas lutas para ter acesso a educação e, em especial, ao ensino superior. De família humilde, sua mãe era professora de educação infantil. Ela e o ex-padrasto de Ayane viam no estudo uma possibilidade de emancipação. “Tenho o entendimento de que consegui acessar a educação superior muito mais pelos incentivos da minha família, foi meu diferencial”. 

“Eu sempre falo que a ideia de classe vai além da compreensão econômica. Ao meu ver, classe tem a ver, principalmente, com acesso e privação ao conhecimento”.

Hoje, Ayane é licenciada em Ciências Biológicas, especializada em Educação ambiental, e doutoranda em Filosofia, História e Ensino de Ciências. Ao finalizar o doutorado, em abril de 2019, foi morar em Minas Gerais. Entrou, em primeiro lugar, no pós-doutorado na Universidade Federal de Uberlândia. Enquanto isso, prestava concurso para ser professora do Instituto de Ciências Biológicas e Saúde da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Passou. Atualmente, ela é moradora de Pontal do Araguaia, um município de pouco mais de 6000 habitantes no sudeste do Mato Grosso, a 6 horas de Cuiabá.

“Olha, morar no Mato Grosso tem sido desafiador, porque não é só adaptação ao ambiente, a adaptação é também estar completamente sozinha. Mas pra mim isso tem sido interessante do ponto de vista cultural”. Diz gostar de conhecer pessoas novas e enfrentar os desafios mais brandos da convivência social. E cita Clarice Lispector: “É igual a poesia, tenho medos pequenos e coragens absurdas”.

Na pandemia, entre aulas, orientações de TCC, lives e reuniões que a deixam com pouco tempo livre, gosta de assistir todos os tipos de séries e filmes. “Sou apaixonada. Inclusive, tenho utilizado isso para minha prática profissional”. Ela se refere ao projeto de extensão que coordena: Cine com Ciências. O projeto utiliza filmes para discutir questões sociocientíficas, ciência e a relação disso com a sociedade, ética e política.

Outra paixão da bióloga é qualquer local ligado à natureza. “Natureza, nesse modo de entender, a proximidade com elementos não tão antropizados: praia, rio, cachoeira, parques”. E não deixa de comentar sobre os incêndios que tem acontecido no bioma do Pantanal: “É uma temática recorrente por aqui, acontece com frequência, mas esse é o ano com recorde de queimadas, porque temos um governo que está autorizando o desmonte ambiental”.

Ela se refere aos dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) recém divulgados que mostram que ultrapassamos o recorde de queimadas em um ano para o Pantanal, os piores dados em 15 anos. “O Pantanal está correndo o risco de ser completamente destruído e esse é um assunto que deveria ser pautado com mais honestidade, no sentido de apontar quem são as pessoas responsáveis. Eu explicitamente aponto o agronegócio como o principal responsável por esse tipo de crime ambiental e por esse problema que é sem medidas para o planeta e para a humanidade”, finaliza.