Mulheres sapatão lutam contra a falta de espaços de lazer e entretenimento em Salvador
Inseridas na comunidade LGBTQIAPN+, essas mulheres sentem a escassez e invisibilidade de eventos voltados para o público feminino e tentam transgredir ao contexto cultural na capital baiana
Por: Laura Rosa Matos (parceria Agenda e COMB90*)
O público feminino sapatão não é o foco dos eventos culturais de Salvador. Para essas mulheres, os espaços de entretenimento são ainda mais limitados por serem corpos invisibilizados socialmente. E sapatonas soteropolitanas tentam burlar essa lógica, construindo locais que sejam voltados para o bem-estar de outras semelhantes.
SA-PA-TÃO? A palavra sapatão foi usada para nomear de maneira pejorativa mulheres que se relacionam com mulheres, e hoje símbolo de identidade política dessas relações, é um termo guarda-chuva, abarca a sapatonice lésbica, bissexual, pansexual, transexual e não-binária.” |
Para Lizandra Moreira, de 29 anos, lésbica, engenheira química de formação, já sentiu na pele estar em espaços dominados por homens, a busca de território para sapatonas é a vontade de sentir pertencimento. “Gosto de estar em ‘rolês’ inclusivos, porque até os lugares LGBTs em Salvador são voltados para homem gays, isso me incomoda. Eu quero me sentir pertencente ao espaço. O fato é que ali não ter um semelhante faz falta, e incomoda não ter tantas alternativas em Salvador.”
A criação de espaços para mulheres da comunidade LGBTAI+ é dar liberdade para elas terem território para estabelecer trocas e afetos.
A criação de espaços para mulheres da comunidade LGBTAI+ é dar liberdade para elas terem território para estabelecer trocas e afetos. Mariana Passos é atriz e idealizadora do Cine Furta-Cor, que começou com empreitada e compartilhamento virtual de filmes com temáticas sáficas que se transformaram em sessões na Sala de Arte às terças-feiras, na capital baiana.
Ela comenta que a ideia do CineClube é se tornar “um ponto de encontro, não sei qual filme eu vou assistir, que eu vá pra encontrar a comunidade sapatão. O filme é uma consequência, porque elas estão ali como fator de socialização, a partir da sessão, a gente conversa e paquera.”
MEMÓRIA-HISTÓRIA ESPAÇOS PARA CORPOS DISSIDENTES FEMININOS
CORPO DIS-SI-DEN-TE? É no corpo que se apresentam as marcas de memória-história dos sujeitos constituídos nas lutas políticas. Seja pela exclusão ou pela violência; seja como performatividade de gênero ou como performances estéticas; seja como corpos falantes ou corpos invisibilizados. |
Os espaços entre trocas de mulheres não são recentes, casas de chá na França, principalmente em Paris, na década de 20 reuniam mulheres para clubes de livros e conversas. Uma das integrantes era a escritora do livro lésbico “Poço da Solidão” de 1928, Radclyffe Hall. A romancista não performava feminilidade, e via naquele espaço um lugar seguro para socializar, algo que outras mulheres sapatão de Salvador, como a engenheira Lizandra ainda procuram quase 100 anos depois.
E no Brasil nos final de 60 até os anos 80, a tentativa de ocupar territórios por corpos dissidentes femininos têm o primeiro registro no Ferro´s Bar em São Paulo, onde mulheres chamadas de “entendidas” se encontravam para o lazer e militância.
“Um espaço de sociabilidade lésbica e de expressão da cultura lésbica, resguardadas suas diferentes nuances de idades, classes, racialidades, onde as mulheres conversavam, namoravam, bebiam, ouviam música, mas também de organização política e militância, sendo um local de resistência política no período da ditadura militar no país,” conta Simone Brandão, professora e líder do grupo LES, que frequentou o bar na época.
A pesquisadora diz que em 15 de novembro de 1980, a Polícia Militar de São Paulo conduziu a Operação Sapatão que tinha o objetivo de prender mulheres lésbicas em bares como o Ferro´s Bar e o critério para a prisão era a performatividade de gênero e associada à identidade sapatão. Aproximadamente 200 mulheres lésbicas foram presas e precisaram pagar fiança para serem liberadas, sem terem cometido qualquer crime.
No local, coletivos de sapatonas, como GALF (Grupo Ação Lésbico-feminista) vendiam o boletim ChanacomChana, um zine informativo, que professora completa que “uma espécie de zine que tinha por objetivo a organização política, a formação e a resistência de lésbicas. A venda do jornal independente foi proibida pelos donos do bar, causando um levante contra a discriminação no dia 19 de agosto de 1983.” Essa foi a primeira manifestação lésbica no Brasil, que originou o dia da Visibilidade Lésbica, e a volta da venda do folhetim no bar.
Em Salvador, o Bar Caras e Bocas passou também por lesbofobia, as represálias ainda mais violentas. O local tinha performances e shows de artistas da comunidade LGBTQIAP+, e era administrado pelo casal Rosy Silva e Alessandra Leite. Durante os 12 anos ativo no Subúrbio, em Periperi e 3 anos na Avenida Carlos Gomes, o local recebeu mais de 10 ataques com pedras e blocos de gelo no telhado, fazendo com que o estabelecimento fechasse.
“Ocasiona no fim desses espaços lésbicos, que em geral já são raros na cena cultural e entretenimento LGBTIA+, para além de explicitar a força que o preconceito ainda conserva em nossa sociedade, também põe fim à memória e à preservação da lembrança desses espaços e essa memória é certamente referência para a construção e fortalecimento dos movimentos sapatão e o seu apagamento é também apagamento das nossas existências”, conclui a pesquisadora Simone Brandão.
CONSTRUÇÃO DE TERRITÓRIO PARA REBUCEITEIOS-BREJOS SE (RE) CONECTAREM
“O Samba de Pretas significa representatividade e resistência,” define Dara Aragão, de 29 anos, que toca reco e pandeiro na banda. O Grupo mostra na essência que mulheres movem para construir e fortalecer espaços onde elas estão inseridas, até pelo mesmo pelo acaso.
“No encerramento de comemoração do Julho das Pretas, no dia 31 de julho de 2022, um bar que ficava localizado no Dois de Julho estava convidando mulheres para fazer um samba de mesa. Foi um encontro sem pretensão, onde a maioria das mulheres não se conheciam. No entanto, esse encontro deu tão certo que no final do samba tivemos incentivo para formarmos um grupo a partir daquele momento. E assim surgiu a banda com mulheres pretas, pertencentes à comunidade LGBTQIAPN+, que demos o nome de Samba de Pretas.”
Musicalista apresenta informação sobre o público que acompanha o grupo ser feminino majoritariamente, acompanhando a proposta da banda. “Posso dizer que 80% do nosso público são de mulheres em uma escala grande de diversidade, seja ela cultural, racial ou religiosa.”
Um espaço conhecido por muitas lésbicas soteropolitanas é o Sapaokê, o nome já diz o que noite apresenta, sapatonas reunidas em um karaokê, no bar A Marujada em Santo Antônio Além do Carmo, que também começou em 2022, uma ideia para fomentar o 8M (Dia Internacional da Mulher). As cantoras, hoje sócias, Thaísa e Lua pensaram em fazer o evento voltado ao protagonismo para público que elas fazem parte. “Nós pensamos em fazer um karaokê, que já era uma coisa presente nos nossos momentos de lazer com nossas amigas. E no começo nossas elas colavam, levando as paqueras, outras amigas,” conta Thaísa do Brega.
A festa começou nas quartas-feiras, veio um pedido das sapaokeiras (como são chamadas as mulheres frequentadoras): “foi crescendo cada vez mais e por pedidos delas mudamos para todo sábado.” E a decisão de probir a entrada de homens cis, que está presente tanto na portaria e na bio do instagram, já sofreu represálias.
“No começo acontecia mais. Não era incomum homens chegarem na portaria, serem notificados que não podem entrar e tentarem causar algum tipo de situação constrangedora com questionamentos, palestrinhas. Mas hoje em dia já acho que a proposta já está mais bem estabelecida e esse tipo de coisa acaba sendo muito espaçado,” explica a dona do Sapaokê.
E por algum tempo era permitido a entrada de homens cis aliados da comunidade LGBT+, e sócias falam abertamente sobre isso no evento. Mas a tentativa de homens gays de botar músicas sequenciadas na lista do karaokê, e roubar a cena do protagonismo feminino, fez com que eles também fossem “banidos” do local.
A engenheira Lizandra Moreira é uma dessas sapaokeiras que comparecem a festa no fim de semana. “O lugar que eu mais bato ponto é o Sapaokê mesmo. Tem várias mulheres massas, que você pode trocar ideia, eu sempre faço amizade quando vou, é algo que eu procuro, estar em rede com outras mulheres lésbicas, fortalecendo a festa que é voltada para nós, porque não eu não conheço outros rolês e bares para mulheres, sapatões, safras em Salvador,” ela explica.
A pesquisadora Simone Brandão explica que a concepção construída traz a invisibilidade do território de mulheres da comunidade LGBT+. “O lugar natural para esses corpos é o não lugar, porque na medida em que a sociedade não reconhece os direitos, desde a existência até a demonstração de afeto em público, essa cidade, esse território é um não lugar para mulheres lésbicas e sapatão. É necessária a construção de um território que possibilite o bem estar desses corpos através da construção de espaços de sociabilidade, com segurança física e emocional, onde se possa viver e expressar o amor sapatão, essa possibilidade de troca de afeto e amizade política entre mulheres.”
A promoção de eventos que contribuam é uma busca de mulheres visibilidade e identidade, como no caso da engenheira Lizandra que também tenta furar essa bolha. “Eu estava até tentando fazer um bloco de sapatão no carnaval. Querendo fazer um bloquinho justamente por essa falta de espaços para nós em Salvador.” Ela busca por festas que reforcem o protagonismo lésbico na capital baiana. “Vi um evento que vai rolar em janeiro, que é o Pagode Delas, uma proposta muito massa de um pagode tocado por e voltado para mulheres, então esse foi um foco de eventos que eu vi assim que eu quero colar.”
LUTA POR MANTER ESPAÇOS NA CENA DE SALVADOR
ROMANCES SÁ-FI-COS? Vem de Sappho/Safo. Esse era o nome de uma conhecida poetisa grega que ficou famosa graças aos seus poemas sobre amor entre mulheres. O fato é que tanto Safo quanto sua terra natal, a ilha de Lesbos, originaram termos para descrever mulheres que se relacionam com mulheres, mas de formas diferentes, independente da orientação sexual. |
A atriz Mariana Passos conta que na pandemia decidiu assistir o máximo de produções voltadas para romances sáficos, no trajeto de compartilhar e dialogar sobre o assunto, e o Cine Furta-Cor tomou forma através um podcast, instagram, lojinha de camisetas até chegar as sessões presenciais na Sala de Arte. O primeiro filme exibido no meio da semana, no dia 8 de agosto, data que celebra a Visibilidade Lésbica no Brasil, e artista lembra que foi um grande passo. “Foi muito importante, porque para uma terça-feira, alcançamos umas 50 pessoas, assistindo um filme em sapatão preto.”
Esse início foi promissor para os donos do espaço, e abriu margem para que o projeto independente trouxesse mais filmes em agosto para o Dia do Orgulho Lésbico e o Dia da Visibilidade Lésbica Mundial. E continuou com encontros nos meses seguintes na tentativa de criar comunidade ao redor para estabelecer trocas, transformando o Cine em um ponto de encontro, o público foi diminuindo, segundo Mariana pela falta de hábito de ocupar esse espaço como protagonismo.
“Estar entre sapatonas, estar entre pares, que eu não vejo forte na comunidade sapatão. As pessoas não se enxergam nesse lugar ainda. Só nos encontros de apartamento, e esse é um espaço estabelecido pelo machismo estrutural, da mulher sempre ocupar o lugar doméstico. É importante as sapatonas pensarem nisso, no campo também político, porque os nossos lazeres são reduzidos dentro de casa, por serem mais seguros e privados, a gente precisa ocupar os outros espaços também. Se não a gente não existe, a invisibilidade tanto é de fora pra dentro quanto é preservada de dentro para fora,” conclui a atriz.
“Quando você assiste o filme só com o sapatão, tem piadas que só quem entende é quem passou por essas situações. É outra experiência. A gente tem que pensar nossa comunidade e na cultura da convergência. A gente tem em comunidade promover a estruturação das comunidades, porque é um lugar político e isso acaba reverberando milhares de pessoas. A gente precisa se aliar.”
O público do Cineclube Furta-Cor foi reduzindo com o passar das sessões semanais e encontra dificuldade de estabelecer uma fidelidade. “O mês de outubro está sendo bem baixo a frequência, de duas ou três pessoas já começaram a voltar para assistir os filmes. Mas a maioria do público está vindo pela divulgação no perfil da Sala de Arte, que tem mais seguidores, o projeto tem hackeado essas pessoas.”
Para Mariana existe um movimento simbólico na construção de assistir e lutar para dividir esse espaço com outras mulheres aqui em Salvador em meio a escassez de lugares de representação. “Quando você assiste o filme só com o sapatão, tem piadas que só quem entende é quem passou por essas situações. É outra experiência. A gente tem que pensar nossa comunidade e na cultura da convergência. A gente tem em comunidade promover a estruturação das comunidades, porque é um lugar político e isso acaba reverberando milhares de pessoas. A gente precisa se aliar.”
*Esta reportagem é uma parceria da Agenda Arte e Cultura com a disciplina COMB90 – Jornalismo Especializado (Facom/UFBA). Os textos são produções de estudantes de graduação em Jornalismo, sob supervisão da profª Drª Graciela Natansohn e da tirocinista Glenda Dantas.
Imagem em destaque: Entrada da festa Sapaokê no bar Marujada, no Santo Antônio Além do Carmo, Salvador, 2023. Foto: Laura Rosa Matos