Literatura e vida: a inspiração da escritora baiana Gláucia Lemos
Com 36 livros publicados, Gláucia Lemos, que em 2010 foi eleita à 14a. Cadeira da Academia de Letras da Bahia conversou com a Agenda Arte e Cultura da UFBA sobre sua vida na literatura, inspirações, cotidiano e criação de personagens, entre outros assuntos. Confira.
*Por Débora Rezende
Com obras voltadas aos públicos infanto-juvenil e adulto, Gláucia Lemos, soteropolitana com mais de 30 anos de carreira nas letras alcançou destaque no campo da literatura a partir do anos 1980, quando recebeu seu primeiro prêmio da Academia de Letras da Bahia, com o livro O Riso da Raposa.
Tendo se interessado pela literatura desde a infância e publicado contos em jornais e revistas na adolescência, Gláucia estudou Direito, Artes Plásticas, Música e Estética. Com sua vasta bagagem acadêmica e emocional, e tendo lançado recentemente seu quinto romance, Marce, a escritora conversou com a Agenda de Arte e Cultura sobre inspirações e literatura.
Agenda Arte e Cultura – Como se deu o seu envolvimento com a literatura, você foi uma criança dada às letras?
Gláucia Lemos – Na infância, eu deixava qualquer coisa para ler. Era o meu passatempo favorito. Para mim, leitura era um prazer. Livros eram sempre o presente que eu queria. Como era uma coisa muito importante, sempre tive muito apoio, tanto por parte da escola quanto da família. Já na infância eu fazia os versinhos, as historinhas. Comecei a escrever desde cedo. Com quinze anos eu já mandava contos para revistas.
Agenda – Seu pai foi um major do exército. Falando sobre suas formações e influências, como acha que isso a influenciou como pessoa e escritora?
Gláucia – Convivi com meu pai muito pouco, ele morreu quando eu tinha dois ou três anos. O que aconteceu comigo em relação a ele foi um trauma, uma marca muito forte que ficou na minha vida. Eu me sentia menos do que minhas amigas porque todo mundo tinha pai e mãe e eu só tinha mãe. O fato de ele ser militar não influenciou coisa alguma. A profissão dele não significou nada. A ausência foi o que marcou.
Agenda – Qual a relação de seus filhos com seus livros? E com a literatura em geral?
Gláucia – No início era aquele deslumbramento, todo mundo ia ao lançamento. Depois eles se acostumaram. É uma coisa que vai se repetindo. Mas eles naturalmente gostam muito que eu seja uma autora conhecida, que faz sucesso. Eu acho que é uma coisa em família: quando há pais que leem, os filhos automaticamente começam a ler também. Acho que é uma coisa genética, essa tendência para escrever. Tipo aquelas famílias em que todo mundo é médico. Eu podia ser uma mãe com quatro filhos escritores, mas eles não se preocupam com isso. Ninguém quer entrar nessa área, mas todos eles têm tendência a escrever.
Agenda – “Todo dia é dia de escrever”. Você concorda com isso?
Gláucia – Todo dia é dia de escrever, concordo. Às vezes a literatura toma conta da gente de um jeito que nos esquecemos de tudo, de dormir, de comer. Meus filhos vêm preocupados dizer “minha mãe, já passou da hora de almoçar”.
Agenda – Marce, seu novo romance, traz questões sobre o amor e as inquietações humanas. Quais foram suas influências para essa história?
Gláucia – Eu acho que minhas influências são o dia a dia, a vida. Eu sou uma pessoa muito observadora e muito preocupada com o entendimento das pessoas. Uma vez, um psicólogo disse que o comum das pessoas é apenas se relacionar com outras. Eu sou um tipo de pessoa que se relaciona com as outras preocupada em como isso vai se refletir nelas: como elas se comportam em relação a certos acontecimentos, certos fatos da vida. Isso faz com que eu penetre muito nos meus personagens. Todos os meus livros são voltados para a parte emocional deles.
Agenda – Quando criamos um personagem, colocamos nele algumas de nossas próprias características, sonhos e ambições. Você acredita nisso?
Gláucia – Eu acho que ninguém tira do nada. E quando uma pessoa adulta já viveu muitas coisas, naturalmente o inconsciente vai jogando isso nos nossos personagens. Vai ter algo de mim ali, das pessoas que passaram pela minha vida, o que passei em algumas situações. Um dia minha filha veio e me perguntou: “Pedro [personagem de Marce] não é aquele primo que a senhora teve na infância?”. Eu tive um primo que era como o personagem, nós éramos cúmplices. Minha filha nem o conheceu, mas notou a semelhança pelas coisas que eu contei a ela. Vai ver que eu refleti isso no livro.
Agenda – Em outubro desse ano você participou da mesa “Lirismo, Sonhos e Imaginários” na Festa Literária Internacional de Cachoeira (Flica). Em sua fala, você disse que suas histórias se apresentam a você. Como isso acontece? As histórias chegam quase prontas à sua cabeça e você vai organizando-as durante o processo de escrita?
Gláucia – É uma coisa que muitas pessoas não acreditam e outras dizem que é gênero que a gente faz, mas eu acredito em inspiração. Existe a transpiração depois. No meu caso, é inspiração mesmo. Uma frase, uma pessoa que eu vejo, algo que assisto. Às vezes nada, às vezes a frase vem à cabeça. É a minha imaginação, vou criando em cima dos acontecimentos. Eu considero bom. Muitas pessoas dizem que não. Eu não esquematizo, não estruturo tudo. A história aparece, uma frase, um acontecimento, às vezes alguém que eu vejo e acho que se parece com uma pessoa de uma história.
Agenda – O reconhecimento de escritores no Brasil ainda é um assunto delicado. Você concorda com isso?
Gláucia – Eu acho que a escola não é valorizada. A cultura, de um modo geral, não é valorizada. Nossos políticos não dão muita importância diante das nossas necessidades. Eles veem na política posição, prestígio, uma maneira talvez de enriquecer, em vez de tornar a população mais enriquecida. Esse desinteresse pela educação e cultura é justamente o que faz com que o povo seja menos capaz de pensar, inculto, mais fácil de ser tangido por medidas eleitoreiras.
Agenda – Em 2010, você foi eleita à 14ª cadeira na Academia de Letras da Bahia. O que significa para você ocupar tal posição?
Gláucia – O reconhecimento de uma Academia de Letras é o coroamento de um trabalho. Quando fui eleita, eu tinha 30 anos de literatura e 34 livros publicados. Todas essas publicações e todos esses anos de literatura, quando meu nome foi proposto, não tinha como ser alegada uma falta de competência e qualidade para ocupar a cadeira.
Agenda – Você conta que um dia viu uma coluna sua, numa página de jornal, largada no chão e se sentiu revoltada. Como foi isso?
Gláucia – Eu me coloco no que eu escrevo. Escrevo com emoção, sou eu intimamente que estou naquela página. Não escrevo secamente. Só consigo escrever se tiver conectada com o assunto. O que aconteceu nessa época: eu escrevia no Diário de Notícias, tinha uma coluna quatro vezes por semana. Um dia eu estava saindo da farmácia, estava chovendo muito e eu andava no asfalto esburacado com muito cuidado, olhando para o chão. Então vi o jornal, um pedaço rasgado que coincidiu com minha coluna. Quando eu olhei, me senti tão insultada: a minha coluna estava no chão, meu artigo estava no chão, aquilo era como se alguém tivesse me agredido.
Agenda – Sua vida pessoal interfere na sua literatura? Situações de tensão e tristeza interrompem o seu trabalho ou ele se torna um refúgio?
Interfere pelo fato de eu ser dona de casa, ser mãe. Fiquei viúva há dezesseis anos e a vida da família passou a depender de mim, do meu cuidado, e tudo isso se reflete no meu trabalho. Eu tenho que me dividir. O trabalho acaba se tornando um refúgio. A minha família é prioridade número um na minha vida, em seguida vem o trabalho. Depois da família, ele é o mais importante.
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Gláucia Maria de Lemos é graduada em Direito pela UCSal (Universidade Católica de Salvador) e pós-graduada em Crítica de Arte pela UFBA (Universidade Federal da Bahia), com especialização na área de Estética. A escritora também estudou Música e Desenho na EBA (Escola de Belas Artes da UFBA) e Arte em série no MAM-BA (Museu de Arte Moderna da Bahia). Gláucia Lemos colaborou com os jornais soteropolitanos como “Diário de Notícias” e “A Tarde”, além do “Jornal das Artes”, em Pernambuco, e dos jornais de São Paulo “Jornal da Crítica” e “O Escritor”. Em setembro de 2013, a escritora baiana lançou o seu 36º livro, Marce.