“O maior sofrimento da transexualidade não é o preconceito, é o desamor consigo mesmo”

Por João Bertonie

Carlos Eduardo Bezerra tem 29 anos e vive em Recife, Pernambuco. Kadu, como prefere ser chamado, é libriano e fã de Game of Thrones, Oasis e Radiohead. Ele seria visto pelas pessoas como um rapaz típico da sua idade, não fosse o fato de ter nascido no corpo de uma mulher. Transexual, Kadu sofre desde o início da adolescência pela sua condição e só recentemente conseguiu se aceitar. Aproveitando a discussão promovida pelo 2º Chá da Diversidade, ocorrido na última segunda-feira, 19, a Agenda conversou com ele, pelo Telegram, aplicativo de troca de mensagens, sobre sua história como pessoa trans (termo usado para referenciar travestis, transexuais da transgêneros) e suas reflexões quanto à situação da população LGBT.

Agenda Arte e Cultura – Você deve ter passado por um processo de autoaceitação, como a maioria das pessoas de identidades não-“normativas”. Como se deu isso com você?

Kadu – Eu acho que é complicado pra todo mundo, mas no meu caso foi bem difícil porque eu cresci numa família que não chega a ser homofóbica, mas não é nem um pouco simpatizante. Não só por isso, foi traumatizante também porque, como qualquer pessoa na minha situação, desde muito cedo eu já me sentia “anormal” e a minha aceitação aconteceu bem tarde, só há quatro anos. Então foi bastante doloroso, eu não me sentia só deslocado ou desigual, eu me sentia criminoso.

Agenda – Como você conseguiu se libertar desse pensamento de que você era “criminoso” por ser trans?

Kadu – Eu conheci uma pessoa [sua atual namorada, Carla*] que me ajudou a entender que a minha opção sexual não mudava o meu caráter, que eu não estava lesando e nem prejudicando ninguém por não seguir regras de uma sociedade falida e que também me ajudou a compreender o que significava ser transexual. Até então eu achava que era lésbica com gostos masculinos, o que as pessoas dão o nome pejorativo de sapatão.

Agenda – Como foi a sua infância, antes de você se assumir como transhomem?

Kadu – Eu sempre fui muito masculino, mesmo quando ainda me negava a me aceitar, desde muito criança. Gostava de brincadeiras que em sua maioria são praticadas por meninos, como jogar futebol. Gostava de roupas largas, jogar bolinha de gude. As outras crianças, quando não hostilizavam, faziam piada. Elas me chamavam de Maria João e outros apelidos. Na adolescência eu tentei esconder o máximo que pude e acredito que tive sucesso em alguns momentos, mas perdi amigos quando não conseguia manter isso escondido.

Agenda – Então você já sofreu preconceito por ser trans.

Kadu – O preconceito começou comigo. Eu nunca gostei de mim mesmo porque eu olhava no espelho e me via completamente fora do que eu gostaria de ver. Não gostava do meu corpo, não gostava do jeito como meu cabelo era grande, não gostava de saber que tinha órgãos tipicamente femininos. Isso é uma coisa que você não consegue evitar se sentir. Ao sentir que eu não gostava de “me parecer com uma mulher” eu mesmo me punia. Na rua eu sempre sofri com o famoso bullying. Na rua eu sofri pouco disso; acho que o preconceito maior veio de pessoas mais próximas ou da minha própria família.

Agenda – Sua família não aceita a sua condição? Como fica a sua situação dentro de casa?

Kadu – É f… né? Mas de certa forma isso é meio que culpa minha. Eu tenho um pai complicado, amo muito meu pai, mas ele jamais me aceitará, e minha mãe é muito medrosa. Eu fui empurrando minha situação com a barriga por muitos anos, porque eu não tinha nenhum interesse em conflitos, mas aí eu conheci a Carla e as coisas mudaram.

Agenda – O que você acha que pode e deve ser feito pra minimizar o sofrimento das pessoas trans? Como lutar com um preconceito tão forte?

Kadu – Em primeiro lugar, precisamos que nossos direitos básicos sejam respeitados. Temos o direito de sermos quem quisermos, portanto, o direito a uma nova identidade e adequação do corpo é primordial. Não para esconder da sociedade que um dia tivemos um corpo e uma identidade diferentes e sim para que possamos amar o que estamos vendo. O maior sofrimento da transexualidade não é o preconceito, é o desamor consigo mesmo. Ter nossos direitos enquanto seres humanos respeitados também. Uma parte da população acha que somos animais por não seguirmos um padrão social pré-imposto. Nós não temos proteção contra isso, somos antes de tudo humanos e gozamos do mesmo direito constitucional, mas isso não é colocado na prática. E mais educação. Educação para que o respeito ao próximo comece desde cedo, desde a infância.

*nome alterado para preservar a privacidade.