“Por muito tempo nossas histórias foram contadas por outras pessoas que não nós”, afirma produtora de Cinema e Audiovisual
Daiane Rosário aponta as dificuldades enfrentadas pelas mulheres negras no universo do cinema e audiovisual baianos e destaca as produções recentes no estado
Por: Glenda Dantas
Daiane é montadora e produtora de Cinema e Audiovisual. Egressa do Bacharelado Interdisciplinar em Artes com ênfase em Cinema e Audiovisual, atualmente estuda Jornalismo na Faculdade de Comunicação da UFBA (Facom/UFBA). Como montadora realizou, dentre outros, o documentário Tráfico de Pessoas: a escravidão moderna (2014). Também trabalhou em séries exibidas na grade da TVE/BA, como Pé no chão (2014). Em busca de identificação e novas narrativas de raça e gênero nas produções cinematográficas, integra grupos que pautam uma nova perspectiva das demandas sociais nas grandes telas. Produziu e montou a série documental “Travessias Negras”, integra a equipe do filme documentário “Revolta dos Búzios” e produz o filme documental “Uma mulher, uma aldeia”.
Em entrevista, por e-mail, concedida à Agenda Arte e Cultura, Daiane fala sobre o local das das mulheres negras no cinema e audiovisual baianos, cinema negro e suas experiências na área. Ela também pontua a importância de ter pessoas negras contando e produzindo narrativas audiovisuais como um instrumento de quebra de estereótipos que foram historicamente construídos sobre essa parcela da população.
Agenda Arte e Cultura: Onde estão as mulheres negras no audiovisual baiano?
Daiane Rosário: Elas estão espalhadas em diversas funções. Pensando no panorama atual, a representatividade feminina no cinema é muito maior do que há três ou quatro anos atrás. Isso é reflexo da entrada de jovens negras nas universidades a partir do sistema de cotas e da amplitude dos cursos de cinema. Considerando que o cinema baiano ainda é predominantemente branco e masculino, as mulheres negras, aos poucos, estão conquistando o espaço. Existem mulheres em direções de filmes, roteiro, animação, artes, produção executiva, assistência de direção e de fotografia, dentre outras funções, mas ainda somos poucas. E no quadro geral de mulheres, nós mulheres negras ainda somos poucas.
AAC: O que impede que as distribuições de ocupação por gênero sejam mais equilibradas e essas mulheres ocupem postos de poder?
Daiane Rosário: Acredito que o que impede é a estrutura patriarcal. Quando constatamos que as grandes produtoras cinematográficas são historicamente comandadas por homens brancos, que são privilegiados e não abrem mão dessa condição, o processo de inserção de mulheres negras é extremamente dificultado. Também influencia a dificuldade de acesso à editais, que passa por esse mesmo processo. Para reverter esse quadro, é necessário criar mecanismo de inserção dessas mulheres nas produções, nos lugares de poder e dentro das produções audiovisuais e cinematográficas. Os negros são 54% da população brasileira, mas nem nas telas, nem atrás delas, nos vemos refletidos.
É um absurdo ainda vermos os negros nas novelas como empregados domésticos.
AAC: Quais ações estão sendo feitas para fomentar a entrada e permanência de mulheres negras no audiovisual baiano?
Daiane Rosário: Ações em políticas públicas ainda não tem muitas, mas enquanto coletividade existe. Há uma rede mulheres que estão se unindo, nós conversamos, ajudamos nas produções umas das outras, investimos em temáticas femininas. Isso fortalece e impulsiona para que mais mulheres entrem nesse meio e comecem a produzir. Essa força coletiva e impulsionamento para ver outras mulheres pretas produzindo inspira. São iniciativas de mulheres negras para acolher outras mulheres negras a fim de que a gente comece a se fortalecer no mercado e a ter visibilidade. É importante, para fomentar essa entrada, nos vermos em imagens sem estereótipos e hipersexualização. O cinema é parte responsável pela construção do imaginário e nós, mulheres, tentamos reconstruir esse imaginário pré-formatado para trazer nossas imagens para dentro das telas do cinema baiano, então essa é uma rede onde conseguimos nos enxergar umas nas outras.
AAC: Além das já mencionadas, que outra importância têm trazer temáticas negras para as telas?
Daiane Rosário: Por muito tempo, nossas histórias foram contadas por outras pessoas que não nós. Fomos estereotipados, marginalizados e banalizados. Até mesmo as nossas representações no cinema eram feitas por pessoas brancas com o rosto pintado fazendo black face. Trazer temáticas negras para as telas é desconstruir a ideia implantada no subconsciente de que não somos bons o suficiente, de não nos vermos nas telas e de querer ser igual ao branco, já que esse é o padrão visto como ideal. Quando temos negros na tela, e por trás dela, assumindo espaços de poder, automaticamente outros negros vão pensar que aquele lugar também pode ser dele. Se ver é planejar um novo futuro, é pensar em outras perspectivas. Nossas presenças nos espaços de poder fazem mudar toda uma conjuntura.
Quero fazer cinema de militância, mas também quero falar de amor, de cuidado, pautar nossas crianças, que são nosso futuro.
AAC: Quem são as mulheres negras que estão produzindo cinema negro hoje na Bahia?
Daiane Rosário: Temos Viviane Ferreira que atualmente está em São Paulo, ela dirigiu O Dia de Jerusa (2014); Larissa Fulana de Tal, que dirigiu e roteirizou Cinzas (2015); Jamile Coelho e Cíntia Maria que dirigem a série de animação Òrun Àiyé (2015); temos Tamires Vieira que é produtora executiva e diretora; Tais Amordivino, que é diretora e roteirista do curta A invisibilidade da Identidade Negra na Educação (2016), Júlia Morais, que dirigiu o filme Avesso. Ainda somos poucas, mas estamos fazendo a diferença.
AAC: Qual foi sua primeira experiência com o audiovisual?
Daiane Rosário: Comecei no projeto Olhar no Cineasta, da TVE/BA, lá fazíamos produtos com óticas cinematográficas e projetos sociais. Meu primeiro contato com o cinema foi trabalhando com o cineasta Antônio Olavo, quando fiz assistência de fotografia no filme A Revolta dos Búzios e realmente tive a oportunidade de estar nas produções e no protagonismo de fato. Recentemente, também com ele, participei do Travessias Negras (2017). Nessa série tive muita autonomia para produzir, fazer fotografia, montagem e foi uma experiência incrível, pois além disso, fui protagonista do primeiro episódio da série, algo que ainda não tinha acontecido. Foi uma experiência grandiosa, tanto para a vida profissional quanto para a pessoal. Fiz também a produção do filme Uma Mulher, Uma Aldeia, que ainda não foi finalizado. Cinema para mim é como café, quando eu experimentei, não quis mais parar de beber.
Quando negros assumem espaços de poder, outros negros vêem aqueles espaços como possibilidades para si.
AAC: Você almeja suas próprias produções?
Daiane Rosário: Eu almejo muito fazer filmes, mas ainda estou no processo de maturação. Há uma cobrança social para isso, mas eu acabei virando as costas para ela, pois entendi que tenho o meu tempo e quero fazer algo com o que me sinta bem, que fale sobre nós, pretos.
AAC: Visionando essas produções, o que você busca despertar a partir delas?
Daiane Rosário: Pretendo auxiliar na ressignificação do imaginário estereotipado que nos permeia. Quero fazer cinema de militância, mas também quero falar de amor, de cuidado, pautar nossas crianças, que são nosso futuro. Eu penso muito em fazer filmes para crianças, preparar o terreno para que elas possam encontrar outro mundo, pois não vamos aceitar mais contarem nossas histórias sem que sejamos consultados. Isso é um crime.
AAC: Quais dificuldades enfrentadas pelo audiovisual para ressignificar o imaginário coletivo sobre a população negra?
Daiane Rosário: Eu acredito que nada melhor do que nós para falar de nós, e é o que estamos fazendo, mas é difícil atingir o objetivo, principalmente quando pensamos que ainda hoje existem pessoas contando nossas histórias de maneiras subalternizadas e que tenhamos que continuar brigando por essas mesmas coisas. É um absurdo ainda vermos os negros nas novelas como empregados domésticos, mulheres que para ascenderem precisam casar com um homem branco. No cinema, é inconcebível sermos sempre o amigo do branco e quando começamos a contar nossas histórias, elas mudam. Nós temos demandas que ainda são urgentes, exatamente porque são denúncias.