Feminicídio: intervenção na UFBA reflete sobre controle da vida e da morte das mulheres

Conheça a origem da intervenção artística de um memorial
ao lado do Restaurante Universitário da UFBA, em Ondina

Por: Glenda Dantas

O assassinato de mulheres em contextos marcados pela desigualdade de gênero recebeu uma designação particular: feminicídio. De acordo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o número de assassinatos chega a 4,8 para cada 100 mil mulheres. O Brasil aparece como o quinto país com maior taxa de feminicídio no mundo. O Mapa da Violência de 2015 aponta que, entre 1980 e 2013, 106.093 pessoas morreram pela condição de ser mulher. Muitas vezes, são os próprios familiares (50,3%) ou parceiros/ex-parceiros (33,2%) os que cometem os assassinatos.

A partir dos anos 2000 diversas nações latino-americanas incluíram o feminicídio em sua legislação, apesar disso ainda há a necessidade de melhorias nas políticas públicas para coibir as práticas misóginas e fazer com que as discussões sobre a temática cheguem à todas as pessoas, incluindo nos ambientes universitários. Foi percebendo essa carência de discussões sobre o tema na UFBA e o crescente registro de casos de feminicídio no Brasil e no mundo, que a estudante de Direção Teatral, Juliana Roiz, 34 anos, começou em 2016 a pesquisar sobre o tema. Ela pretendia criar, através da arte, um produto que expandisse as discussões sobre feminicídio.

“Eu acho que nós, enquanto artistas, devemos ter responsabilidade social. Por isso, a grande parte das minhas produções são voltadas para contextos políticos, culturais e sociais”, explicou Roiz.

Para ela, o modo como mídia pauta os crimes de feminicídio também precisa ser ressignificado. “As coberturas, na maioria das vezes, não levam em consideração à vítima em vida, sua histórias e seus sonhos, há muito sensacionalismo, o que torna difícil de nos reconhecermos nessas histórias, ou até mesmo familiares e amigos”, acrescentou.

 

Feminicídio: do luto à luta
A oportunidade de pôr em prática os planos veio para Juliana em 2017, enquanto estudava a disciplina Rito e Performance. Foi assim que surgiu “Feminicídio: do luto à luta”, performance que resultou na reprodução de um memorial a céu aberto, intervenção artística que está instalada ao lado do Restaurante Universitário da UFBA, em Ondina.

A performance completa aconteceu no dia 30 de janeiro. O início foi no PAF V, onde foram exibidos vídeos contendo depoimentos de familiares. “Pensei cenicamente em um modo que o público pudesse participar ativamente do processo, como um protesto, para isso reproduzimos um cortejo fúnebre até a Praça das Artes, onde depositamos as cruzes e o caixão. Deixei ali para que aqueles que não estiveram presentes no dia do ‘funeral’, pudessem ver e serem tocados pelo tema”, contou Juliana.

Durante o cortejo, atrizes vestidas de branco e com maquiagem de hematomas no rosto e corpo carregaram um caixão de madeira com rosas e fotos das vítimas, e o público segurou velas e cruzes pintadas com nomes e anos de morte de mulheres vítimas de feminicídio. Ao mesmo tempo uma musicista tocou em um teclado de sopro canções fúnebres.

Juliana pretende, ainda, instalar a intervenção em outros campus da universidade e outros locais da cidade.

Simbolismos
A ideia de seguir em cortejo fúnebre, de acordo Juliana, foi no intuito de resgatar este hábito, antes comum em Salvador, mas que ainda se perpetua em muitas cidades do interior do estado, que é conduzir o corpo do finado, até o túmulo ou cremação. O cortejo seguiu pela Praça das Artes em direção ao local que foi instalada a intervenção.

As cruzes pintadas de rosa também não são à toa. A estudante se inspirou no movimento de organizações não-governamentais mexicanas, formadas em sua maioria por mulheres, que prestam apoio a mães e familiares de vítimas de feminicídio.

Intervenção foi instalada logo na entrada do campus de Ondina (Foto: Geovana Côrtes)
Intervenção foi instalada logo na entrada do campus de Ondina (Foto: Geovana Côrtes)

Os nomes selecionados para serem homenageados na intervenção são as vítimas de casos emblemáticos, tanto mundiais, quanto nacionais. Alguns desses são: Eloá Cristina, sequestrada e assassinada pelo namorado em 17 de outubro de 2008; a travesti Laura Vermont, de 18 anos, que foi morta a socos e pauladas durante uma briga em 20 de junho de 2015; Bárbara, santa da religião católica, que em sua história consta que ela teve os seios cortados e foi degolada pelo próprio pai; e durante o Fórum Social Mundial 2018 foi inserida a cruz em homenagem à ex-vereadora Marielle Franco, assassinada em 14 de março de 2018, e o crime continua sem solução, após três meses. 

“Selecionei casos distintos, onde os assassinos foram cônjuges, estranhos na rua, parentes ou, como é o caso de Marielle, cometido pela ação, omissão e por agentes do Estado, e trazer casos nacionais e internacionais foi justamente para evidenciar que é um fenômeno mundial”, explicou a artista.

Impacto nos estudantes
As reações dos passantes, especialmente mulheres, é de choque e um sentimento entre elas é comum: “poderia ser eu ali”. “Lembro quando vi pela primeira vez a intervenção. Foi um susto misturado com angústia. Eu parei e fiquei um tempão olhando pra ela, pensando “meu Deus, é verdade”, e chorei. Toda vez que passo, continuo sentindo a mesma coisa. Nós ainda morremos porque somos mulheres”, declarou a aluna do Bacharelado Interdisciplinar (BI) de Artes , Mariana Barros (20).

Também do BI de Artes, Lunnah Santos, 32, conta que quando passa pelo local da intervenção evita olhar. “Eu tento não olhar, mas é impossível. Eu contemplo tudo e parece que o tempo para porque entro em reflexão instantânea sobre o tanto de mulheres ali representadas. Sinto pavor em imaginar se fosse comigo ou com alguém ainda mais próximo”, declarou.

Desde 2015, o feminicídio consta no Código Penal como circunstância qualificadora do crime de homicídio, graças à Lei 13.140. A regra também incluiu os assassinatos motivados pela condição de gênero da vítima no rol dos crimes hediondos, o que aumenta a pena de um terço, até a metade da atribuída ao autor do crime. Para definir a motivação, é considerado que o crime deve envolver menosprezo ou discriminação à condição de mulher, ou violência doméstica e familiar. 

De acordo Sandra Muñoz, membra da Rede de Atenção à Mulheres em Situação de Violência, não basta a criação e implementação de leis e políticas públicas, se esses direitos não são assegurados, especialmente para prevenção dos feminicídios.

“O nosso papel, enquanto sociedade civil, é cobrar que esses serviços que acolhem mulheres vítimas de violência funcionem. Esse é o meu trabalho dentro da Rede, pois acredito que não adianta a implementação, se os espaços de acolhimento, por exemplo, não estão preparados para recebê-las”, declarou.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *