Agenda na Saladearte: Coringa tensiona saúde mental e luta de classes em história envolvente
Por Amanda Palma e Jô Stella
Personagens complexas e cheias de nuances e conflitos ganham meu coração, por isso Batman e Coringa são minha dupla de herói e vilão favorita. Quando vi as primeiras imagens do Coringa de Joaquin Phoenix, pensei que talvez surgisse, enfim, um concorrente para a atuação de Heath Ledger no meu coração, e eu não estava enganada. O Coringa está em cartaz na Saladearte da UFBA, no Vale do Canela.
Partindo de uma outra construção da personagem, mais subjetiva e intimista, Phoenix sutilmente nos mostra as nuances psicológicas de Coringa. Sem apelar para caricaturas exageradas, o ator sustenta a personagem quase com doçura, trazendo à cena o transtorno psiquiátrico e a influência dele nas atitudes do personagem, uma questão fundamental do Coringa, mas que muitas vezes é deixada de lado por diretores e roteiristas que preferem focar na violência pelo prazer, algo comum ao retratar vilões.
Acompanhamos a história de Arthur Fleck, que vive com sua mãe Penny Fleck (Frances Conroy), em uma situação de pobreza e ele tem a missão de cuidá-la. Penny criou toda uma ilusão sobre a antiga relação dela com Thomas Wayne (Brett Cullen) e, após uma suposta revelação do passado, Arthur dá mais um passo para a sua virada. Ele passa a aceitar a sua personalidade como Coringa. Ele entende que é dessa form que ele consegue se sentir melhor. Ele assume que seus atos violentos lhe fazem bem.
Inclusive, uma grata surpresa neste novo Coringa são as cenas de violência. Com todos os spoilers recebidos, eu esperava por um cinema bem mais espaguete, na linha Tarantino. Porém, apesar de estarem ali, as cenas de violência física se tornam menores diante de toda a violência psicológica que paira no ar durante todo o filme.
Coringa é um filme psicológico, ele tensiona e aflige ao mostrar o descaso e o silêncio que existe na sociedade não só com as camadas sociais subalternizadas, mas principalmente com as pessoas que sofrem de algum distúrbio psicológico ou psiquiátrico.
Esse é o grande silêncio que esse novo coringa me fez ouvir. Saúde mental ainda é um grande tabu social, e não é uma prioridade das pessoas ou das políticas públicas. Ainda há muita vergonha em assumir que se precisa de auxílio psicológico, e quando se assume além de lidar com o julgamento alheio vem a questão: quem tem acesso a atendimento psicológico e psiquiátrico de qualidade?
Todos esses questionamentos se tensionam por meio da luta de classes que costura a história. É importante ressaltar que existem dois vieses no roteiro: a saúde mental e a desigualdade social, que se misturam, mas que não podemos afirmar que uma é consequência da outra.
A direção de arte e fotografia acertam brilhantemente ao construir a atmosfera de sonho e delírio necessária para retratar um personagem construído sobre nuances psicológicas tão densas que não se sustentariam apenas na atuação de Phoenix e no roteiro.
Coringa é uma experiência visual fantástica e envolvente que, para além de apresentar o personagem antes da lenda, convida a reflexão sobre a violência silenciosa que paira no ar e nunca é dita. Erra talvez ao apelar para a violência agressiva cotidiana do sangue pelo sangue, que choca e fere de imediato, mas é apenas uma nuance da grande e silenciosa violência que sustenta nossas estruturas sociais.