Léa Garcia: Uma mulher de arte, uma mulher de luta!
Em sua sexta edição, Mostra Lugar de Mulher é no Cinema homenageia a atriz
Por: Enoe Lopes Pontes*
Os palcos, as telinhas, as telonas… desde os anos 1950, a atriz D. Léa Garcia se faz presente em todos estes locais, brindando o público com seu trabalho. São 7 décadas de carreira, entre seus trabalhos no Teatro Experimental do Negro (TEN), papéis em telenovelas na TV Tupi e Rede Globo e diversas personagens importantes do cinema nacional, Léa permanece atenta ao cenário político. Animada com o que o futuro ainda pode reservar para ela, a intérprete afirma que tem a mesma sede por seu ofício que tinha quando começou a sua jornada.
E que jornada! Além da presença marcante em todas as esferas artísticas nacionais e internacionais, Léa Garcia acumula prêmios e nomeações em diversos festivais, como o Palma de Ouro de Cannes, no qual ela foi indicada por sua personagem Serafina, no filme Orfeu do Carnaval, em 1957. Além disso, Léa já recebeu dois kikitos, em Gramado, um em 2004, por Filhas do Vento, de Joel Zito Araújo, e outro em 2013, por Acalanto, de Arturo Sabóia. No entanto, nunca foram os tapetes vermelhos ou troféus que encheram os olhos da atriz.
De acordo com Léa, ainda que se sinta extremamente honrada com este tipo de reconhecimento, o maior foco de sua vida sempre foi ligar o seu trabalho artístico com a sua causa social, dentro do movimento negro. De sua estreia no espetáculo Rapsódia Negra, em 1952 até os dias de hoje, o maior desejo de Léa é encorajar cada geração de jovens negros, que adentram as artes cênicas.
Esta é uma missão e tanto e é pensando nesta carreira tão rica e permeada de profunda relevância para arte do Brasil que, entre os dias 05 a 09 de julho, a Mostra Lugar de Mulher é no Cinema faz uma homenagem para a artista, em sua sexta edição. Para celebrar este acontecimento, a equipe de comunicação do evento traz uma entrevista completa com Léa, que falou sobre sua paixão pelos palcos e pela arte, mas também sobre o que lhe é mais caro na vida: sua luta incondicional e incansável pelos artistas negros. “Eu sempre pretendi dar um acento, ter uma essência, que eu pudesse passar para o espectador ou para o telespectador ou para o espectador de teatro, alguma coisa da mulher negra, do negro, dentro daquele trabalho que eu estou fazendo”, revela Léa.
ENTREVISTA
ENOE LOPES PONTES – Dentro da sua trajetória artística, com tantos papéis e prêmios, para a senhora quais foram os momentos que mais te impactaram dentro da sua carreira?
LÉA GARCIA – (silêncio). Olha, com relação a prêmios, são todos tão importantes, tão diversificados e todos com o mesmo objetivo, o objetivo de estar realmente reconhecendo a minha trajetória artística. Agora, para mim, o que é mais importante, o que me toca muito, é cada vez que eu estou no teatro e a cortina abre. Isso é uma coisa para o ator que é muito forte, entendeu? Toda estreia é muito forte. Toda vez que você entra em cena é muito forte. Porque os prêmios, é lógico, você fica muito agradecido por esse reconhecimento. E, todos os dias, eu agradeço sempre. Todos eles foram de grande importância para mim.
ELP – Sim, eu compreendo essa questão do teatro e dos prêmios…
LG – Então, eu acho que isso vem, realmente, pra mim, me toca demais, porque fala da minha verdade enquanto mulher, fala da minha realidade dentro das empresas cinematográficas, fala da minha realidade artística. Então, esse reconhecimento é muito importante. É muito importante devido a isso tudo.
ELP – É justamente isso que eu queria perguntar na segunda pergunta, que é como a senhora enxerga o seu papel político e histórico para a composição artística do Brasil?
LG – (silêncio) Olha, essa pergunta eu acho que sou eu que tenho que fazer para vocês. (Risos). Porque eu me tornaria muito envaidecida se eu respondesse isso. Eu acho que isso vocês é que têm que falar, da importância minha enquanto atriz, enquanto política, na história do Brasil. Isso me tornaria uma mulher muito vaidosa, muito envaidecida. Porque o público é que tem que reconhecer isso, não é mesmo?
ELP – É, compreendo o que a senhora quer dizer, mas, então, deixa eu mudar a abordagem da pergunta. Pensando no teatro, no “Rapsódia Negra”, pensando no Grande Teatro da TV Tupi, na sua jornada nas telenovelas, no cinema, em Cannes, como a senhora vê isso de uma forma geral?
LG – Eu sempre representei pretendendo trazer uma mensagem politicamente, de uma forma política, com a visão com relação a população preta. Mesmo em um trabalho comercial que não tenha nada a ver com isso, mas eu sempre pretendi dar um acento, ter uma essência, que eu pudesse passar para o espectador ou para o telespectador ou para o espectador de teatro, alguma coisa da mulher negra, do negro, dentro daquele trabalho que eu estou fazendo. Porque eu tenho essa essência, eu sou negra. Então, de qualquer forma, eu estarei sempre trazendo isso. E a minha intenção sempre foi fazer assim. Eu nunca trabalhei só pelo trabalho em si.
ELP – Sim! Partindo para a terceira pergunta, a senhora tem uma relação antiga com a literatura. Me conte como a senhora enxerga essa dinâmica desta sua paixão pela literatura com o seu trabalho de atriz.
LG – Olha, eu vou dizer uma coisa a você, a minha paixão com relação à literatura, ela tem uma implicação muito grande, porque nós temos que nos tornar não apenas sujeitos, como realizadores. E eu acho que aí sim, nós teremos dentro da minha área um trabalho que fuja bastante do estereótipo, do estereotipado, quando nós tivermos autores negros, que trabalhem com nossa vivência, nosso olhar. Então, a minha paixão pela literatura vem através disso. A minha vida nunca esteve dissociada desta questão, entendeu?
Eu sempre representei pretendendo trazer uma mensagem politicamente, de uma forma política, com a visão com relação a população preta. Mesmo em um trabalho comercial que não tenha nada a ver com isso, mas eu sempre pretendi dar um acento, ter uma essência, que eu pudesse passar para o espectador ou para o telespectador ou para o espectador de teatro, alguma coisa da mulher negra, do negro, dentro daquele trabalho que eu estou fazendo.
ELP – Sim, entendi. Agora indo para a questão, especificamente, de iniciativas como a da Mostra, que faz essa homenagem, esse ano, para a senhora. O que a senhora sente sendo homenageada?
LG – Olha, para mim, minhas homenagens e prêmios sempre foram muito importantes e esta tem essa relevância de se fazer uma mostra de cinema e para mim essa importância é muito grande, porque também é a inclusão da mulher no audiovisual. Então, esse reconhecimento enquanto atriz, dentro do cinema, é um reconhecimento e um incentivo para as próximas gerações dentro do audiovisual. E eu imagino o quanto seja difícil para vocês realizarem isso tudo, porque a falta de credibilidade em relação às nossas experiências artísticas e as nossas possibilidades são muito grandes. Então, é de grande importância e que eu reconheço não só o meu trabalho, mas reconheço o trabalho de vocês, porque nós estamos aqui para somar, não é verdade?
ELP – É verdade!
LG – É uma soma de trabalhos.
ELP – Sim! Então, partindo para a última questão, uma coisa que eu fiquei pensando assim, principalmente nesse momento no qual a gente está vivendo tão fortemente essa afirmação de empoderamento de gênero, principalmente da mulher negra, eu queria saber, como é que funciona atualmente o processo artístico da senhora? Quais são as suas sensações ao começar um novo papel?
LG – É aquilo que eu digo a você, o artista não pode viver, meu amor, sem sair para seu encanto, como o artista da arte cênica não pode viver sem representar, um músico não pode viver sem compor, um pintor não pode viver sem uma tela, um pincel e suas tintas. Então, eu estou agradecendo, neste momento, porque nós estamos saindo do obscurantismo, para entrarmos num outro momento, que vem abraçar culturalmente os artistas do país. Porque nós estávamos aqui sufocados, vivendo desesperados, não reconhecidos. Então, eu acho que eu tenho que…eu ainda estou digerindo este momento. Então, todo trabalho que vier, eu pretendo abraçar, porque nós temos que abraçar esse momento mais do que nunca. Eu não sei o que nos espera. Mas, eu digo com relação a ameaça ainda, entendeu?
ELP – Entendi. (risos leves).
LG – É. Mas…Então, eu acho que…Eu acho não, eu tenho certeza de que esse momento é maravilhoso para todos nós e temos que segurá-lo com unhas e dentes. Nós temos que fazer deste momento, temos que realmente realizarmos, neste momento, tudo o que for possível.
ELP – Perfeito! A senhora gostaria de acrescentar mais alguma coisa, dentro das coisas que a gente conversou aqui ou alguma outra coisa que a senhora gostaria de dizer para a posteridade?
LG – Eu quero dizer que eu incentivo ao máximo a todos os jovens negros que estão abraçando a arte cênica e que eles não desistam nunca, jamais. Porque eu sei que é uma vida difícil, é uma profissão difícil. Passamos por várias exigências que vários outros trabalhos, outras profissões, não fazem. E eu desejo que sigam! Porque dentro de mim, e isso é uma coisa muito importante, eu tenho a mesma vontade, o mesmo desejo de realizar. O mesmo desejo, idêntico ao de quando eu pisei no palco pela primeira vez. A mesma vontade, a mesma garra! E eu quero que essa chama não se apague, de nenhum jovem que esteja iniciando essa carreira. Então, quero dizer que estamos todos juntos, somando, nessa carreira difícil e que não podemos deixar de lado o nosso ideal, os nossos sonhos.
A sexta Mostra conta com patrocínio do Governo da Bahia, por meio do edital ‘Respeita as Minas’, da Secretaria de Políticas para as Mulheres, e tem como instituição executora o IADES, realização das produtoras Salamandra Produções, Olho de Vidro e Favela Cult. Tem o apoio institucional da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Funceb/SecultBA), por meio da Diretoria de Audiovisual (DIMAS).
*A reprodução na íntegra desta entrevista conduzida pela jornalista Enoe Lopes Pontes com a grande Léa Garcia, no site da Agenda Arte e Cultura é a possibilidade de eternizar no nosso site um material riquíssimo, além de um compromisso ético político de fazer ecoar ainda mais as vozes de mulheres como D. Léa Garcia. É uma honra para nós.