Trabalho de pesquisadora da UFBA analisa isolamento social de pessoas com transtornos mentais

Dissertação escrita por Yuri Tripodi carrega traços pessoas da vida da autora, e deve ser publicada também em formato de livro

Por Ícaro Lima

Diagnosticada com transtorno bipolar e quadro de psicose aguda, já tendo passado por três internamentos, dois na Bahia e um na Itália, a pesquisadora Yuri Tripodi resolveu ressignificar sua situação e a transformou no seu projeto de mestrado, desenvolvido na UFBA. Como mais um capítulo da produção acadêmica voltada para a discussão de temas pouco recorrentes no debate público tradicional, o trabalho desenvolvido está prestes a ser lançado.

O título da pesquisa é  “O corpo da loucura na contemporaneidade: um manifesto autoetnográfico e debate questões sociais a respeito das pessoas que vivem com algum tipo de transtorno mental. “O meu projeto de mestrado tem super a ver com a minha vida, a partir de um cunho sociológico. Eu analiso a minha experiência, meu processo de adoecimento psíquico dentro dessa sociedade”, conta a pesquisadora.

Nascida em Salvador, Yuri iniciou, aos 19 anos, a faculdade de Letras Vernáculas na Universidade Estadual da Bahia (UNEB). Mas após quatro meses, migrou para Artes Cênicas, na Escola de Teatro da UFBA. Tempo depois, percebeu que algumas questões que envolviam a performance e a problematização do corpo eram incipientes dentro da instituição. A partir disso, ela decidiu ir para a Escola de Dança com o intuito de iniciar o seu projeto de mestrado. 

#pracegover: Foto noturna, sombras de plantas e casas ao fundo. No centro da imagem sentada de perfil, Yuri Tripodi, mulher branca de barba e cabelos castanhos está encostada na grade da porta de sua casa, ela veste vestido vermelho e colete branco. Segura uma planta, espada de Oxossi, nas mãos e está de pernas cruzadas e sandália. Seu rosto é iluminado pela luz que vem de dentro da casa, que está de porta aberta. A porta é azul clara, com nove quadrados amarelos pintados. A casa por dentro tem a parede azul e o chão verde.
Para Yuri, a importância desse trabalho está no seu potencial como ferramenta de discussão sobre o tema. (foto: Monique Feitosa)

Yuri Tripodi é uma pessoa de múltiplas ações. Além de estar presente em performances (dos mais variados tipos) e peças teatrais, ela também desenvolve e comunica suas ideias em outros ambientes, como o espaço universitário.

Hoje com 29 anos, Yuri já produziu performances nas áreas de dança, videoarte, fotografia, moda, cinema e música, sempre fazendo intersecções entres esses temas. Atualmente, está preparando a parte final de uma pesquisa para o mestrado que ainda será defendido pelo Programa de Pós graduação em Dança e deverá ser publicado em breve, com chances, inclusive, de virar livro.

A pesquisa
A dissertação de Yuri busca problematizar o isolamento social de pessoas diagnosticadas com algum tipo de transtorno mental em dois capítulos: ‘Mente como dispositivo de controle’, noção criada por ela própria e ‘O corpo louco e sua enunciação’.

Para Yuri, a importância desse trabalho está no seu potencial como ferramenta de discussão sobre o tema. “A gente precisa repensar, reconstruir alguns modos de ver, de perceber o mundo a partir dessas experiências que não são só minhas, mas que revelam algumas coisas que precisam ser ditas, alguns recados que precisam ser dados e escutados”, diz. 

Um dos pontos principais da pesquisa é a análise de como poderes sociais atuam sobre os corpos de pessoas que têm transtornos psíquicos.  “Eu afirmo que essa estrutura social produz tanto o surto como o próprio diagnóstico. Estou burlando o interdito público que gera inúmeros sofrimentos e impõe um silêncio histórico, dissertando diretamente sobre o dispositivo de controle e o contrato social que tem como mote de ação a espetacularização da vida”, explica.

#PraCegoVer: Yuri Tripodi, mulher branca e de barba, olha de lado para a câmera. Ela usa brincos vermelhos e segura uma blusa listrada em preto e branco
(Foto: Monique Feitosa)

Yuri ainda trata de outros temas que, para ela, não recebem a devida atenção da sociedade. “A psicofobia [rejeição contra quem tem algum tipo de transtorno, distúrbio ou deficiência mental], que é um preconceito que a gente não fala muito, é pouquíssimo discutido em nossa sociedade. É um preconceito estrutural, sistêmico, que se torna legitimado e autorizado”, conta.

Em um dos momentos da dissertação, ela descreve sobre a sua ida à Assembleia Legislativa para exigir a criminalização da psicofobia. “O processo da criminalização da psicofobia é urgente, necessário. Existe um projeto de lei que foi arquivado. Mas nós temos, como sociedade civil, labutar para que esse preconceito seja criminalizado e para que a gente escute essas vozes que são silenciadas, que são apagadas”, defende.

Uma das visões que ela utiliza para problematizar as questões da pesquisa é a de que o Estado atua, de forma sistemática, como um causador de algumas doenças.“Eu trabalho sob a perspectiva de não ‘doente’, mas ‘adoecido psiquicamente’. Nós não somos pobres, somos empobrecidos. Não somos doentes, somos adoecidos”, explica.

Nas palavras de Yuri, o surgimento desse dispositivo de controle, junto ao que chama de “construção social do outro” são os causadores das violências que atingem minorias.

“Se a gente tem um genocídio negro, de pessoas trans, um genocídio indígena, e diversos outros tipos de violências que são legitimadas, diversas desigualdades sociais e processos que precisam ser aniquilados”, defende.

Yuri considera que a “construção social do outro” e a desigualdade social são coisas que precisam, o quanto antes, serem extintas. Ela afirma que há um controle institucional sobre os corpos de certas pessoas: “Existe uma produção política calcada na produção do medo”, diz.

Holocausto Brasileiro
Yuri participou, recentemente, de um espetáculo que esteve em apresentação na Casa Preta, no bairro 2 de Julho, chamado “Holocausto Brasileiro – Prontuário da Razão Degenerada”. A obra original que inspirou a peça narra a história do Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais, onde milhares de pacientes foram internados à força, sem diagnóstico de doença mental, causando a morte de 60 mil pessoas. 

A peça analisou questões a respeito do funcionamento de manicômios e centros psiquiátricos, e discutiu o adoecimento do sistema social, a loucura, o estigma e a psicofobia sob o viés do racismo.

Yuri conta que a obra possui uma relação muito forte com seu objeto de pesquisa de mestrado: “Dialoga muito. Inclusive, o processo de estudos que se desenvolveram a partir do Holocausto Brasileiro entrou para a minha dissertação de forma efetiva”.

Um dos diversos traços em comum entre o trabalho de Yuri e a peça Holocausto Brasileiro é  o recorte dado à questão do tratamento de pessoas com transtornos mentais no Brasil sob uma perspectiva racial.

De forma geral, Yuri considera que participar do espetáculo agregou bastante ao seu processo de pesquisa. “O Holocausto foi maravilhoso, porque Diego Araúja [diretor] e Gabriela Rocha [produtora] tiveram uma pesquisa muito profunda para fazer um texto extremamente consistente, que versa sobre a história do Brasil, sobre essas políticas que perpassam o pós-abolição, os processos de eugenia, higienização e gentrificação que desembocam em processos altamente contemporâneos”.

Para Yuri, esse tipo de ação artística é uma resposta às ações que tentam diminuir a voz e o espaço de pessoas como ela. “Tudo o que se almeja é que a gente não tenha memória. Que a gente se esqueça dos processos que pautaram nós e nossos ancestrais. E nós trazemos a memória contra o apagamento sistemático de nossas vidas”, defende.

Expectativas
A publicação deste trabalho representa, para Yuri, a expectativa de conseguir alguns avanços em sua carreira, inclusive, no sentido financeiro, o que iria ajudá-la e também dar a opção de conseguir cooperar com outros parceiros. “Esse livro precisa me ajudar a sobreviver. A viver dignamente dentro desse processo de eu poder colaborar com meus irmãos e irmãs. De eu poder colaborar com muitas lutas sociais, porque eu não penso só em mim”, conta. 

Além do livro, Yuri já tem outros projetos em mente. Em dezembro, irá estrear a performance “Em Nome da Razão” que surgiu através do seu próprio projeto de pesquisa de mestrado e que se propõe a investigar a relação entre a loucura e a sociedade contemporânea, baseando-se em uma perspectiva que reconfigura estados e sensações vivenciados por Yuri a partir de processos psicóticos e de internamento sofridos por ela. 

O espetáculo ficará em cartaz nos dias 4, 5, 6, 11, 12 e 13 no Teatro Gamboa Nova, no Largo dos Aflitos. Mais informações podem ser conferidas clicando aqui.

Para Yuri, tanto o livro, como as performances e estudos que já fez e continua fazendo, são ações que não podem parar de acontecer: “Nós não escolhemos não ter paz. Nós lutamos para que haja paz, mas, como diz Jota Mombaça, a paz não é uma opção”.

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