Dia do estudante: Tito Carvalhal e a pedagogia como ponto de ruptura

 

Por Madu Motta

 

 

 

No dia 11 de agosto é comemorado o Dia do Estudante, juntamente a esta data, também comemora-se o Dia do Advogado. Não é à toa que essas duas datas dividem a visibilidade no mesmo dia, engana-se quem acha que o dia do estudante foi originalmente destinado a estudantes dos ensinos básicos. Em 1827, em um Brasil ainda governado pelo imperador D. Pedro I foi criada em homenagem aos 100 anos de abertura da Faculdade de Direito e até então a data é lembrada pela valorização do estudo e comprometimento do cidadão com a busca por sabedoria.

 

Mas, após quase 100 anos da consolidação dessa data, a simbologia que antes era destinada à gratificação de cursos desde sempre elitizados, agora tem uma nova personificação, marcada pela luta por igualdade de direitos no âmbito educacional, melhorias na estrutura da educação e valorização da educação inclusiva e democrática. A cada ano, o dia 11 de agosto é repensado como uma data para reivindicar o acesso universal à educação de qualidade e com isso, pessoas vêm estudando e se desenvolvendo de forma crítica as estruturas da educação para ser possível entender a origem e desenvolvimento dessa estrutura.

 

Tito Carvalhal, formado em pedagogia, educador popular, estudante universitário, é uma dessas pessoas que questiona o papel da estrutura educacional atual, e traz a luta por uma educação como ferramenta para construção de alianças políticas e afetivas. Integrante do Fórum Trans da Bahia, do Coletivo de Mulheres LeMarx: Grupo de Estudos Angela Davis e do Fórum sobre Medicalização, Tito traz em seus discursos e vivências discussões sobre gêneros e sexualidades em suas diversidades e intersecções na formação docente.

 

Em entrevista a Agenda de Arte e Cultura, Tito discute sobre a educação no contexto atual, a visibilidade de questões interseccionais como gênero e sexualidade no contexto educacional e sobre as dificuldades na construção de novas narrativas no fazer pedagógico atualmente.

Confira a entrevista:

 

Para você qual o papel da educação?

Pensando especificamente a educação escolar, o papel dela, de forma instituída, é educar nossas corpas para adaptação a estrutura vigente. Ela foi feita para nos fazer acreditar que essa estrutura social injusta e desigual é natural e é impossível transformá-la. Quem tem condições de pagar, vai acessar uma educação que vai adaptar seu corpo e suas subjetividades, já tão autorizadas, para disputar espaços de poder, para disputar postos de trabalho menos precarizados, que gozem de determinados prestígios/vantagens sociais; que vai te formar te fazendo acreditar que sua vida é especial e que, portanto você merece gozar das vantagens que sua raça, que sua condição econômica, que seu gênero, etc. lhe proporcionam. Quem não tem grana vai acessar uma educação pública propositadamente sucateada, para enfraquecer os corpos e subjetividades de potenciais revoltosos. Às vezes, a escola pública não é sucateada na estrutura física, quando a gente pensa, por exemplo, nas escolas modelo de tempo integral que o governo do estado tem feito. São escolas com uma grande estrutura física: salas de aula espaçosas, auditório, piscina, quadras de esportes, mas quando olhamos para o currículo imposto temos a reforma do ensino médio e o que ela tem de pior.

A gente tá na luta para que a educação seja espaço de produção e compartilhamento de conhecimentos que podem nos deixar menos vulneráveis, que possam nos ajudar a construir alianças políticas e afetivas, outros jeitos de estar no mundo, que nos façam apostar na construção e produção de vida coletiva. A gente só tá vivo aqui hoje, porque nossas vidas são sustentadas por muita gente, por muitas vidas.

 

 

Como o seu contexto de estudo da graduação se forma sobre as interseccionalidades de gênero e sexualidade na formação docente e qual o impacto disso para o estudante?

Até hoje a educação básica não foi universalizada. De acordo com o Censo de 2022, são mais de 11 milhões de pessoas que não tiveram acesso à escolarização que garantisse sequer a alfabetização básica dentro da língua imposta, que a sociedade vai cobrar da gente depois e vai culpabilizar quem não teve esse acesso.

Eu, assim como várias outras pessoas, só consegui acessar a universidade por conta das políticas públicas de ampliação das vagas, o Reuni. E agora na pós-graduação, por conta das políticas de cotas para pessoas trans e travestis. Quando chego na pedagogia e começo a observar a educação escolar a partir de um outro lugar, ainda estudante, mas também professor em formação, e durante a formação vou acessando, tanto dentro quanto fora da academia, várias discussões que eu não tinha tido acesso antes, vários “forninhos” vão despencando. Revisito muita coisa da minha história escolar com outras lentes e um desses acessos envolve as discussões sobre as intersecções que nos estruturam, produzindo acessos, exclusões, possibilidades de negociação, nessa estrutura social que transforma diferenças em desigualdades. Essa sensibilidade analítica produzida pelo feminismo negro, nomeada de interseccionalidade, nos convoca o tempo interior a nos posicionarmos, é um chamamento ético-político.

No TCC, que foi orientado pela professora Nanci Franco Rebouças, nosso foco foi tentar visibilizar alguns pontos sensíveis, presenças ainda tímidas de discussões sobre gêneros e sexualidades em suas diversidades e intersecções na formação docente. Para isso, a gente construiu dois cenários pedagógicos, que a gente tá chamando de ficções testemunhadas, que desenham cenas vividas, presenciadas e/ou testemunhadas nesse espaço-tempo durante a graduação na Faced/UFBA, mas que não são restritas a ela. Pensar raça, gênero, sexualidade, condição econômica… embora saibamos que são questões estruturantes na produção de análises sobre todo e qualquer tema/fenômeno, muitas vezes ainda são tratadas na chave do recorte. E nosso trabalho tenta ir um pouco na contramão disso

 

Você leciona uma oficina que é de grande relevância para quem está no processo de pesquisa por trazer essa perspectiva que perpassa a vida do estudante, que é esse sentimento de incapacidade no fazer científico. Eu queria saber o que significa adotar uma perspectiva desmedicalizante na produção de pesquisas e escritas acadêmicas e como você percebeu esse problema e buscou trazer essa proposta da oficina?

Permanecer na universidade tem sido adoecedor, agente que vem de uma escolarização precarizada para o que é cobrado e valorizado na academia, já entra sendo tratado como impostor e por conta disso muitas vezes passa a acreditar mesmo que “aqui não é pra mim”. Essa foi uma sentença que depois virou um mantra que me acompanha até hoje. E hoje entendo que a universidade não é para mim mesmo. Ela não foi pensada para pessoas como eu. A gente tá aqui na marra. A universidade é uma estrutura racista, machista, LGBTQIAfóbica, capacitista, elitista. Nos trata como inferiores, transtornadas, incapazes cognitivamente e culturalmente carentes. Tentamos desconstruir isso com a escrita, reivindicando nosso direito de ocupar esse espaço que é nosso e que possui potências nas contradições que também dão vida à universidade. Mas não queremos qualquer universidade ou qualquer educação. Nossa concepção de qualidade é outra.

Um grande problema da vaidade é não perceber que a chamada dificuldade de aprendizagem pode ser, na verdade, falta de interesse, porque o conhecimento oferecido é ruim e violento. Muitas vezes, a questão não são as diferenças, mas a transformação delas em desigualdades e a responsabilização individual dessas questões construídas socialmente. A perspectiva desmedicalizante busca enfrentar esses problemas de forma coletiva, na troca, no ajuntado de mãos, assentando caminhos para as próximas gerações. Aprendi com Cris Rosa, do Lab Rachadura, que muitas vezes, temos que escrever na força da raiva, pelo certo, não do jeito que eles consideram certo.

 

Quais mudanças nas políticas educacionais você acredita que poderiam melhorar a qualidade e equidade na formação dos estudantes?

Nada menos que reparação histórica em todos os sentidos e estruturas, objetivas e subjetivas. É sobre justiça social. Nenhuma educação emancipatória é possível dentro de um sistema social injusto.

 

 

 

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