Diretor José Umberto fala sobre o lançamento do filme – ‘Revoada’: Última vingança do cangaço
Por Gleisi Silva
Nascido em Boquim, Sergipe, em 1949, José Umberto trilhou uma trajetória marcada pela migração do sertão para a capital baiana, seguindo a profecia do Conselheiro de Canudos. Em Salvador, acolhido pelo mar, iniciou seus estudos na Universidade Federal da Bahia (UFBA), sofrendo as consequências das pressões obscurantistas durante a ditadura militar instaurada em 1964. Durante esse período, acompanhou de perto o trabalho pedagógico de Walter da Silveira, um pioneiro do Clube de Cinema da Bahia.
E foi descendo e subindo ladeiras que terminou sua graduação em Ciências Sociais pela UFBA, exercendo a crítica cinematográfica no extinto e laborioso Jornal da Bahia e começando sua história como cineasta em um curso de iniciação do cinema ministrado pelo Grupo Experimental de Cinema da Universidade, em 1968.
Embora tenha se graduado em Ciências Sociais pela Ufba em 1971, Umberto nunca abandonou o cinema, consolidando sua presença na cena filmográfica da Bahia como diretor, fotógrafo, roteirista e montador.
Seu primeiro longa de ficção, “O Anjo Negro”, foi lançado em 1972. Entre 1976 e 1977, dirigiu a Coordenação da Imagem e Som da Fundação Cultural do Estado da Bahia, e de 1980 a 1990, produziu documentários para a T-E/Bahia. Durante esse período, produziu trabalhos significativos como “Revoada”, que explora o cangaço, e o curta “A Musa do Cangaço” (1982). Sua filmografia inclui uma ampla gama de produções, como “O Forte” (1967), “Perâmbulo” (1967/68), “Doce Amargo” (1968), em parceria com André Luiz Oliveira), “Julinho Contra a Bruxa no Espaço” (1971), “Voo Interrompido” (1969/70), “Salv a dor” (1974), “Urubu” (1977), “Maíra” (1979/80), e “Brabeza” (1978), trilogia em parceria com Robinson Roberto, “Glub – Estória de um Espanto” (1979), “Cantos Flutuantes” (1980), “Bola Chuveirinho” (1981), “Aspeb – Bolsas de Estudos” (1981), “Ritual da Paixão” (1985), “Lua Violada” (2002). Suas contribuições à cultura foram igualmente evidentes em produções em vídeo como “Boquim – Terra da Laranja” (1990), “Milton Gaúcho – Ator Baiano” (1992), “Rex Schindler – Produtor Baiano” (1994), “Monte Santo – O Caminho da Santa Cruz” (1997), e “O Povo do Carnaval” (2001).
José Umberto continua a ser uma figura central na cultura e cinematográfica baiana, cuja obra abre um extenso e diversificado leque de expressões artísticas e culturais. E para marcar ainda mais sua trajetória, o José Umberto convida todos para assistir o seu mais novo filme ‘Revoada’: Última vingança do cangaço, que acontece no dia 15 de agosto nos cinemas de todo o país. E para contar mais sobre sua história e o que o público pode esperar do evento, a Agenda Arte e Cultura entrevistou o diretor, confira.
Agenda Arte e Cultura: Qual foi a principal inspiração para a criação de Revoada?
José Umberto: Entre a morte de Lampião, na Grota de Angico/SE, e o meu nascimento, também em Sergipe, passaram-se onze anos. Logo na infância, o cangaço para mim era algo legendário, ainda quase vivo: ouvia causos pela tradição oral e já acompanhava a literatura de cordel vendida na feira onde bandido e herói vicejavam. Aquele mote épico penetrara no meu imaginário logo. Entrou em mim como algo mítico onde a fantasia e o real se lambuzavam como Fábula e História. E a mistura cresceu de proporção na minha tendência ou vocação artística.
Ainda menino lá em Feira de Santana, comecei a frequentar com amigos as matinês de cinema e vi germinar o ciclo de filmes “nordestern” inspirados no fenômeno de massa O Cangaceiro, de Lima Barreto.
São tendências maniqueistas baseadas no dualismo do bem e do mal, do bandido e do heroi, enfim uma narrativa conservadora de início, meio e fim para controlar as mentes sob o influxo da indústria cultural mainstream. Com o tempo de estudos e reflexões fui ampliando a compreensão do mundo para uma visão mais complexa e crítica. Aí muita água corre debaixo da ponte do conhecimento. Em 1981 realizo o doc curta metragem A Musa do Cangaço e no ano de 1988 publico o livro Dadá, um período frutífero de convivência com a lendária cangaceira, mulher de Corisco do bando de Lampião. A síntese de aprendizagem histórica-existencial desses encontros resultou na elaboração aprofundada e concisa do roteiro cinematográfico de longa metragem Revoada, uma rota turbulenta do crepúsculo do cangaço. Consegui fundir História & Fábula através do desenvolvimento criativo de uma dramaturgia que cruzasse a catarse com o fato, o latente e o manifesto, o sonho e o real.
A. C: Há alguma cena ou sequência no filme que você considera particularmente significativa ou simbólica? Pode falar mais sobre ela?
J.U: O filme corresponde a uma colcha de retalhos de planos montados em função da unidade estética. O significado é o gesto e o significante constitui o ritmo. O diretor funciona como o maestro de orquestra. A harmonia do trabalho decorre de uma sintaxe coletiva. Tem-se que conduzir o processo baseando-se na respiração e na transpiração. É suor e abandono, uma ascese voltada para um ponto, para um objetivo, como o arqueiro que acerta o alvo. E essa conduta requer concentração e disposição. Estar convicto do percurso a ser desenvolvido na caminhada. O que requer sutileza e domínio dos seus instrumentos disponíveis. Além de flexibilidade para deixar aflorar a subjetividade de cada participante. Quase um rito, porém aberto à improvisação, à soma de cada um envolvido nesse jogo de cartas. A melhor cena é aquela que transparece a espontaneidade do ser. A câmera testemunha o momento mágico e registra a arquitetura do tempo. Esse fluir personifica a suprarrealidade.
A. C: Pode nos contar um pouco sobre a escolha da trilha sonora e como ela contribui para a atmosfera do filme?
J.U: O som no cinema combina valores sensoriais. Ele funciona em conjunto, em bloco: fala, ruídos e música. Denominamos trilha sonora e possui uma função plástica. Além de favorecer a atmosfera do filme, a trilha se agrega à imagem para marcar o ritmo da narrativa. A música de João Omar em Revoada foi trabalhada nessa trajetória perspectiva. É um elemento de composição plástica, não o som como adereço ou penduricalho, ou como algo autônomo. Não! É um composto dramático, uma figura auditiva, uma peça de áudio que se visualiza na tela.
A. C: Qual é a mensagem principal que você espera que o público leve para casa após assistir ao filme?
J.U: Eu não trabalho com mensagem. Não sou mensageiro. Considero-me um transmissor de sentimento e pensamento. Um emissor plástico que exige do espectador uma participação, uma operação de coparticipação, onde interessa passar emoção e conhecimento, numa junção dialética entre forma e conteúdo. O olho e o coração absorvem a imagem em movimento. Trata-se de uma abstração que ganha sentido. E nela se deposita a alma criadora: importa tocar, tanto na epiderme quanto na essência do ser. O tema do cangaço trata-se de uma moldura cujo quadro é a humanidade no tempo e no espaço. E assim o público penetra nesse universo artístico a fim de se transportar para ele mesmo e para o meio em que vivem as gentes, as personagens no interior de suas paisagens. O físico como energia pura, como contato, como se fizéssemos um carinho ou déssemos uma bofetada: interessa o impacto, o susto, a beleza em sua potência máxima.
A. C: Quais foram os maiores desafios na produção deste filme e como você os superou?
J.U: O que interessa é que o filme tá pronto e entregue ao público. Isso significa um salto qualitativo surpreendente. Isso porque há um chiste rocambolesco de que na Bahia ninguém fica em pé. Pois é, a Bahia me adotou com a generosidade de suas ladeiras irônicas e burlescas. Mas sempre me mantive na minha condição de artista marginal avant la lettre.
Cineasta autônomo, criador independente que resiste aos apagamentos de província, aos sucessivos processos kafkianos de condenação ao índex das convenções dogmáticas tupiniquins, um alvoroço para quem insiste no seu projeto de invenção permanente, de expor-se ao risco da linguagem experimental, da busca da arte totalizante, na entrega absoluta do cinema livre.
Sigo os ensinamentos do poeta barroco Gregório de Mattos e Guerra que amargou o exílio, mas não abandonou a poética libertária. Só a arte nos salva.
A. C: Como você espera que Revoada contribua para o fomento e a manutenção da cultura popular e do cangaço?
J.U: O cangaço andava meio arredio do cinema quando eu realizei em 1982 o documentário A Musa do Cangaço e em seguida escrevi o ensaio Benjamim Abrahão, O Mascate Que Filmou Lampião na revista de Pesquisadores do Cinema Brasileiro, além do livro Dadá para, logo em seguida, escrever o roteiro de cinema Revoada. Foi um processo intelectual que redespertou o gênero nordestern. Porém, com nova configuração artística e repleta de maior aprofundamento em termos de pesquisa histórica. O assunto se revela imorredouro e com nuances inusitados e singulares de brasilidade tanto no gestual quanto no figurino e sobretudo no modo peculiar dos falares sertanejos de antanho.
A. C: O que você espera que o público sinta ao assistir ao filme?
J.U: Empatia com o outro. Reconhecimento de aspectos que desconhecemos de nós mesmos. Ou seja, o despertar de uma ambiência singular de identidade brasileira, contudo dentro da abertura da fala de Tolstói: “Se queres ser universal pinta a sua aldeia”.
A. C: Há algum próximo projeto ou ideia de filme que você possa compartilhar com a gente?
J.U: Tenho projetos de média e longa metragens. Os projetos me agarram como visgo de jaca. Moema é roteiro de longa: encontra-se pronto pra filmar. Trata de uma ficcionalização da antropofagia ritual tupinambá nas terras ancestrais de Pindorama, região de palmeiras selvagens.
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