Universitária, esposa e mãe trans: conheça a vida materna de Yuna

“O afeto familiar nos foi negado ao longo da história. Amar é resistência”, afirma a estudante 

Por Laiz Menezes*

Graduanda de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Yuna Santana, 26, mulher trans, é mãe de Dionísio Santana Brandon, 8 meses, e casada com com Theo Brandon, 24, pai e trans, estudante de medicina da Universidade Estadual da Bahia (Uneb).  Em entrevista especial do Dia das Mães para a Agenda, a universitária conta como está sua vida materna e como é ter uma família em um molde não tradicional. Não é fácil, mas ela enfrenta todas as dificuldades para garantir os seus direitos e celebra todos os dias pelo lar que construiu. 

 

Como é a Yuna mãe? quais preconceitos ela enfrenta?
A Yuna mãe é uma mulher realizada. Sempre soube que teria um filho, mas nunca imaginei que ocorreria dessa forma. Muito me alegra saber que conseguimos superar todas as barreiras: as sociais, culturais, políticas, corporais, entre outras. A sociedade brasileira, porém, ainda não reconhece a minha maternidade. Nunca sou vista como mãe do meu bebê, sempre me perguntam quem são os pais. Esse preconceito tivemos que enfrentar desde antes do nascimento, logo na primeira ultrassonografia. Tem um episódio marcante que posso trazer. Um dia, no mercado, a operadora de caixa, se julgando na melhor das intenções, comentou: “Que neném lindo, que bom que a mãe e o pai não se importam de você carregar, né? Os tempos estão mudando!”. Respondi que éramos os pais e a única reação dela foi rir descrente e insistir até o fim do atendimento em descobrir quem eram os “genitores verdadeiros”. Já li também, em publicações que noticiavam nossa história, que nosso bebê era o anticristo, porque nascia de “invertidos” e que não merecia ter uma família como a nossa. Theo, meu marido, já recebeu ameaça no Instagram de um perfil anônimo, sugerindo que daria um soco na barriga dele. Ouço com frequência pedidos de que eu não “influencie” minha criança. Tudo isso escancara a maldade e a ignorância da sociedade com questões de gênero.

O que você faz no dia a dia com seu filho?
Antigamente nosso tempo era mais escasso, eu passava o dia trabalhando e a noite na faculdade. Minha mãe passava a manhã com ele enquanto Theo estava na faculdade, depois ele assumia até eu chegar. Eu cuidava pela madrugada e geralmente ia para o trabalho sem dormir. O regime de isolamento social nos aproximou mais, agora estou em home office (trabalho de casa) e tendo aulas virtuais. Passamos o dia inteiro juntos, ele é bastante apegado. Assistimos desenho, ele ama me ouvir cantar, toco violão e teclado. Temos enfrentado dias mais tranquilos pela falta de contato com pessoas fora de nossa família, o que é irônico nesse tempo de caos causado pela pandemia. Está sendo muito gostoso acompanhar a evolução do meu filho dia após dia.

Como é a relação com a sua família e a de Theo?
O nascimento de Dionísio ensinou um pouco minha família a valorizar a vida. Antes eu tinha apenas a minha mãe e meu irmão, hoje consigo conviver de maneira menos conturbada com meu pai. Morar separado ajudou nesse processo. Eles mantêm contato com Dionísio com frequência e os outros parentes viraram as costas. Já a família de Theo é um pouco mais complicada, ninguém até o momento viu o nosso filho. A mãe dele o rejeita, apenas o irmão mantém contato, mas mora em São Paulo, ainda não o conheci pessoalmente.

Como foi quando você se tornou mãe, você se imaginava nessa vida materna?
Eu sempre quis ter um filho/a, mas só via a adoção como possibilidade. Estar em um relacionamento com um homem trans que queria ser pai me despertou para esse novo mundo de alternativas. Infelizmente não tivemos condições para planejar muito, tínhamos que interromper o tratamento hormonal de Theo o quanto antes. No fim deu tudo certo, foi uma gestação esperada, feita com muito carinho e cuidado. 

Yuna, Dionísio e Theo (Foto: acervo pessoal)
Yuna, Dionísio e Theo (Foto: acervo pessoal)

Como foi para registrar o filho de vocês? Na certidão consta que você é a mãe e ele o pai?
O registro foi mais tranquilo, vez que a certidão de nascimento não trabalha mais com as categorias paternidade e maternidade, mas com filiação. A dificuldade foi com a emissão da Declaração de Nascido Vivo (DNV) que é emitido pelo local em que o parto ocorreu, no nosso caso o Hospital Santo Amaro. A DNV é primeiro documento com valor jurídico que serve de base para que o oficial de registro proceda com a emissão da certidão. Lá ainda constam essas categorias, pai e mãe, e foi muito difícil convencer o setor jurídico do hospital que nossas identidades de gênero são legítimas e legalmente reconhecidas, ou seja, não existe nenhum impedimento jurídico em me declarar como mãe e Theo como pai. Nós nos recusamos a ter esse documento emitido em desacordo com nosso gênero expressado e socialmente vivido pela questão de reconhecimento legal das nossas identidades trans. E, para além ser uma violação a nossa honra subjetiva, é um desrespeito a um reconhecimento que o Estado validou, a partir do momento que nossa Suprema Corte decidiu e sancionou por força de lei. Eu já tenho o sexo feminino e meu marido tem o masculino nos documentos e, mesmo assim, sob o argumento que era um fato médico, o sexo biológico, eles queriam atribuir esses papéis sociais a nós de acordo com a genitália com a qual nascemos, o que foi um completo absurdo. A rede SUS, na figura do Instituto de Perinatologia da Bahia (Iperba), baseada em um parecer do Cartório de Brotas, se recusou, o que considero uma profunda desvalorização dos recentes direitos da população trans conquistados via judiciário e dos Direitos Humanos de modo geral, respeitados e destacados pela nossa Constituição Federal. Não foi fácil, as estruturas sociais, sobretudo as instituições de saúde, não estão preparadas para esse diálogo. Após muita negociação, com apoio de órgãos como Defensoria Pública do Estado (DPE-BA), Ministério Público do Estado (MP-BA) e Ministério Público da União (MPU), conseguimos, na rede privada, que o nosso pleito fosse atendido e conseguimos registrar Dionísio. Se a DNV fosse emitida com meu nome enquanto pai e o de Theo enquanto mãe, ainda que a certidão de nascimento não trabalhe com a categoria pai e mãe, o oficial poderia se recusar a registrar alegando ambiguidade/divergência de informações. Meu marido ia se apresentar como pai, obviamente, o RG dele é masculino e o meu feminino e, ao fazer a conferência dos dados, o oficial perceberia que o nome dele estava como mãe e não pai, assim ele poderia alegar que toda a DNV tivesse sido emitida errada e pedir para fazer novamente. Até explicarmos que somos um casal trans e que o hospital se recusou a preencher o documento de acordo com nossas informações registrais, isso ia demorar muito e o meu filho não podia ficar sem certidão. Dionísio não ia poder ser incluído no plano de saúde de Theo porque, de acordo com a legislação, até 30 dias após o nascimento, a gente pode inserir no plano de saúde da pessoa que gestou e pariu, mas como ele não teria registro,  não conseguiríamos fazer a inserção. Por isso lutamos até o fim, até esgotar nossas energias para conseguir essa conquista. Foi o primeiro caso na Bahia, que eu tenho conhecimento, de uma Declaração de Nascidos Vivos em que foi respeitado o gênero e o sexo das pessoas trans.

Você acha que sua família acaba despertando muita curiosidade?
Com certeza. Muita gente critica e não entende, gente do próprio meio LGBT+. O olhar sobre nossos corpos é exotificante. Mas também há o contrapoder, como diz Foucault (poder que se insurge e reage contra o dito normal, legítimo, moral ou ético). Ganhamos uma rede de afetos muito poderosa. Ativistas dos direitos humanos de todos os cantos do mundo já nos mandaram mensagens. Tem sido revigorante para seguir na contramão do “cis-tema”.

Qual a expectativa pro seu primeiro dia das mães com seu filho nos braços?
O dia das mães sempre foi muito especial para mim, não pela lógica demagoga e capitalista que leva ao consumo, mas por eu ter uma relação muito forte com minha mãe e por saber que ela valoriza esses momentos. Hoje, sinto o prazer e responsabilidade de ocupar ambos os lugares, a de filha que deseja passar com a mãe e a de mãe cujo maior presente é o filho. Tenho noção também do valor simbólico disso. A sociedade nos narra como inimigos da família e nós, no contrapoder, estamos aqui, firmes e celebrando a família que construímos, uma que não nos rejeita. 

Qual conselho você daria para as pessoas da comunidade LGBT+ que também querem formar uma família?
Não vai ser fácil. Conduzir uma família já não é tarefa simples, quanto mais sendo LGBT+. Mas nada, em absoluto, paga o preço de ser quem se é. Se feito com convicção, responsabilidade e amor, não tem como dar errado. O afeto familiar nos foi negado ao longo da história. Amar é resistência e eu amo e me orgulho muito da família que construí.

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