Comércio online ganha força entre os sebos de Salvador para driblar crise econômica
Ambiente de preservação cultural e democratização da leitura, sebos se reinventam para continuarem em funcionamento
Maysa Polcri
O diretor de cinema francês Robert Bresson costumava dizer que um filme morre e renasce em cada etapa do seu processo de realização. Em certa medida, é o mesmo que acontece com os livros. Até serem vendidas, obras literárias passam por um longo processo que inclui criação, edição, revisão, diagramação e impressão. Os livros podem chegar até os leitores por diversos meios depois de publicados, um deles é o sebo. Muito mais do que uma loja de livros usados, os sebos são uma forma de democratização da leitura e preservação cultural. Neste Dia Mundial do Livro, a Agenda Arte e Cultura mostra como eles têm enfrentado um momento difícil, tanto pela pandemia, como pelos novos hábitos que os leitores adquirem com a internet.
“Vender livros nunca foi uma tarefa fácil”, afirma a publicitária Carla Urbanetto, 33, proprietária do sebo Porto dos Livros, que fechou por não conseguir pagar mais o aluguel em junho do ano passado. Hoje, os livros ficam em um depósito no Rio Vermelho e são vendidos exclusivamente pela internet. Se ser livreiro no Brasil não é uma tarefa fácil, o governo parece criar ainda mais empecilhos para este comércio. A Constituição brasileira determina que a venda de livros e do papel destinado à impressão são imunes à cobrança de impostos, mas a Receita Federal pretende retirar a isenção porque, segundo ela, os livros são consumidos pela faixa mais rica da população (acima de 10 salários mínimos). O governo pretende tributar os livros com a criação da Contribuição de Bens e Serviços (CBS), que deve unificar impostos em substituição ao PIS e à Confins.
Em 2015, a editora baiana Solisluna criou o projeto Carrinho de Livros, que consiste em uma pequena livraria ambulante que leva livros para serem comercializados em espaços públicos por um preço barato. O carrinho já rodou algumas periferias de Salvador e tem como objetivo aproximar o livro dos leitores. “Vendemos livros para pessoas que nunca tinham comprado um antes”, conta a editora Valéria Pergentino. Para ela, que trabalha editando livros há 28 anos, os tributos, se aprovados, vão tornar inviável a venda de livros no país. “Estou confiante que essa medida não vai passar, editores e associações estão unidos. A taxação pode deixar os livros até 6 vezes mais caros, seria impossível”, afirma.
De acordo com uma pesquisa realizada pela Nielsen Book e divulgada pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros, entre 2012 e 2018 o faturamento de livrarias digitais cresceu 9,3%. Valéria Pergentino julga que a Amazon foi a responsável por provar que o comércio online de livros funciona e defende o e-commerce como um caminho de salvação.
“Os livros acompanham o desenvolvimento da humanidade, os negócios mudam, mas eles ficam”.
Enquanto grandes redes de livrarias não suportam mais os prejuízos e precisam fechar, os sebos, geralmente pequenos e menos luxuosos, são uma opção de consumo mais em conta e sobrevivem na capital baiana se reinventando com a venda online de livros durante a pandemia. Para aqueles que não possuem site próprio, a Estante Virtual, portal que reúne o maior acervo de livros usados do Brasil, é a solução. Além de democratizar a leitura, os sebos são uma forma de preservação do patrimônio cultural, uma vez que neles se encontram também livros raros que não estão mais em circulação.
Porto do Livros
“Desmontar nossa loja foi um processo sofrido, mas foi tudo muito rápido, tivemos que ser práticos”, lembra Carla Urbanetto, proprietária do Porto dos Livros desde 2016. Antes de ter que fechar em junho do ano passado por não conseguir mais custear o aluguel, o Porto era localizado em frente à praia que dá nome ao sebo e, além de loja e café, era um ponto de encontro e eventos culturais. As edições do Sarau do Porto aconteciam aos domingos e movimentavam a Barra reunindo cantores, atores, poetas e músicos, numa iniciativa de divulgar trabalhos de artistas locais e promover trocas culturais. O Sarau tem acontecido de forma online, mas não com a mesma frequência do presencial.
Apesar de Carla e seu sócio terem fechado a loja física, os livros continuam sendo vendidos na Estante Virtual e no site do sebo, que entrou no ar durante a pandemia. Carla conta que no meio de 2020 as vendas online para fora da Bahia cresceram, mas que hoje o faturamento do sebo online chega a só 30% do que era antigamente, por isso ela não vê a possibilidade de abrir outra loja presencial tão cedo. “O que a gente lucra agora no online não pagaria nosso aluguel, por enquanto é inviável voltar a montar uma loja física”, afirma. Para além dos negócios, Carla acredita que os sebos possuem um papel importante na formação de cidadãos: “Os livros formam nosso pensamento crítico, é preciso que as pessoas possam acessá-los mais facilmente e o sebo proporciona isso”.
Jade Oliveira, 19, é estudante de jornalismo e conheceu um sebo pela primeira vez alguns meses antes da pandemia, em um passeio cultural com o pai e o irmão e se encantou. “Para mim o sebo é um ambiente confortável e acolhedor, tem muita história ali dentro. Adoro folhear os livros e perceber que eles fizeram parte da vida de outras pessoas”. Jade costumava comprar livros nas grandes livrarias dos shoppings, mas devido às restrições de circulação começou a comprar online, inclusive no Porto dos Livros.
Sebo João Brandão (JB)
Os irmãos João e Eurico Brandão já eram famosos por trabalharem no ramo de livros usados em Recife quando, a convite de Luís Viana Filho, então governador da Bahia, fundaram o Sebo Brandão em Salvador no ano de 1969, em plena ditadura militar. Eurico conta inclusive que eles faturaram muito durante o regime comprando livros dos comunistas que fugiam do país. Mais de 50 anos depois, o acervo de aproximadamente 500 mil livros, vários entre eles raros, virou ponto turístico do Centro e os irmãos, personalidades da cidade. Porém, depois de desentendimentos, João Brandão decidiu sair da sociedade e montar o Sebo João Brandão (JB) em 2011. Quem conta a história é Viviane Brandão, 43, que desde de 2014 trabalha com o pai no Sebo JB, também no Centro da cidade.
A filha foi quem cadastrou o sebo na Estante Virtual em 2015 e é quem cuida até hoje dessa parte do negócio. O e-commerce, desde que implementado no Sebo JB, nunca superou as vendas no balcão, que é como os livreiros chamam as vendas presenciais. No final de 2019 e início de 2020, Viviane lembra que a loja estava bem movimentada, principalmente por jovens que buscavam o resgate dos livros materiais em detrimento dos e-books, e por turistas que vinham passar o verão na cidade.
“Com a pandemia zerou tudo, a sorte foi que tínhamos uma reserva (financeira)”, conta.
Em março de 2020, Viviane e João foram obrigados a fechar a loja devido à pandemia. Aos poucos, foram se habituando às vendas exclusivamente online, que tiveram um pico na metade do ano passado, mas que diminuíram conforme outras cidades reabriram o comércio.
Apesar da distância física nas vendas online, Viviane procura aproximar os clientes do sebo enviando fotos e vídeos dos livros que serão comprados. “Tento não perder o diálogo com os leitores, muitas pessoas vinham aqui para conversar com meu pai”, conta. Segundo ela, o perfil dos leitores continua sendo o mesmo (em geral, pessoas acima de 30 anos) e os livros que mais vendem são os de direito, filosofia e história geral. “A internet é uma loteria, então disponibilizamos o máximo de livros possíveis para termos mais chances de vender”. Durante a primeira semana de reabertura do comércio em Salvador, Viviane realizou por volta de dez vendas e considera o movimento ainda muito fraco se comparado ao antes da pandemia.
Sebos União e Jorge Amado
Rosilene de Almeida Lopes, 56, fundou o Sebo União em 2013, depois de trabalhar durante 20 anos como secretária no Sebo Brandão. O Sebo União, localizado no edifício Sulacap, no Centro da cidade, foi fundado em parceria com três sócios que também já trabalhavam no ramo de livros usados. Hoje, o sebo conta com quase 30 mil livros no acervo e entre compras, vendas e doações, fatura em média 20 mil reais mensalmente. Antes da pandemia, o Sebo União já vendia livros pela internet, através do site próprio e da Estante Virtual, com o fechamento do comércio, Rose conta que as vendas online deram um salto.
“Os clientes começaram a ficar mais tempo em casa e passaram a pesquisar nosso acervo na internet”, explica. Hoje, as vendas no balcão correspondem a 5% do faturamento total do sebo.
Em 2016, enquanto Rose já trabalhava no seu negócio próprio, seu irmão mais novo, José Ferreira Lopes, 49, começou a vender livros na rua, em frente ao câmpus da Universidade Estadual da Bahia, no Cabula. Ele conta que o comércio com os estudantes cresceu e foi o suficiente para montar uma banca no mesmo local e, ainda no mesmo ano, alugar um espaço onde fundou o Sebo Jorge Amado. Vendendo livros principalmente sobre filosofia, literatura e história, José afirma que as vendas no balcão do Sebo Jorge Amado superam as do Sebo União de Rose, no Centro. “O Cabula é um bairro muito carente de livrarias. A UNEB movimenta o comércio, muitos estudantes vêm comprar aqui porque os livros são mais baratos”, explica.
O Sebo Jorge Amado já lucrava vendendo pela Estante Virtual antes mesmo da pandemia, mas as vendas através do site também aumentaram durante o período de maior isolamento social. Com a reabertura do comércio a partir do dia 5 de abril, o movimento do sebo voltou com tudo. Nos três primeiros dias, José conta que lucrou 600 reais. De fato, enquanto o livreiro dava entrevista para esta reportagem, o telefone do sebo Jorge Amado tocou duas vezes e José pausou a conversa para atender um cliente que chegou na loja em busca de um livro.