Trio de mulheres lança e-book gratuito sobre patrimônios de Salvador
O projeto Tessituras do Saber inclui, além do livro digital, cartilha infantil que será disponibilizada em escolas
Maysa Polcri
Você sabe o que o Morro do Cristo e o Marco de Fundação da cidade de Salvador, que se localizam na Barra, a Pedra de Xangô, em Cajazeiras, os murais do artista Carybé e a Festa de Iemanjá possuem em comum? Todas essas manifestações culturais são bens protegidos por leis. Desde a década de 1930, sob influência do artista Mário de Andrade, o debate sobre patrimônios culturais vem ganhando força e legislações têm sido criadas para dar conta de demandas sociais. Mas afinal, o que é um patrimônio cultural? Essencialmente, é essa pergunta que o projeto Tessituras do Saber, lançado neste mês, busca responder.
Com a divulgação de um e-book voltado aos adultos e uma cartilha infantil, que será distribuída em escolas municipais de Salvador e Ilha de Maré, o projeto Tessituras do saber: patrimônio, memória e identidade explora o universo dos bens culturais materiais e imateriais de Salvador, enquanto promove a educação patrimonial. Adriana, Nivea e Magnair são mulheres que possuem trajetórias de vida marcadas pela preocupação com os patrimônios culturais e estão por trás da idealização do projeto contemplado pela Lei Aldir Blanc. O projeto Tessituras foi contemplado no Prêmio Jaime Sodré de Patrimônio Cultural, da Fundação Gregório de Mattos e da prefeitura de Salvador, com recursos do Ministério do Turismo.
A pedagoga Magnair Barbosa foi responsável pela elaboração da cartilha infantil, que inicialmente seria voltada apenas para alunos do quinto ano: “A ideia surgiu da necessidade de materiais para além dos didáticos, e que os alunos pudessem se identificar”, conta. No conteúdo infantil, houve um cuidado para que os alunos criassem identificação com a história, por isso, o grafiteiro Bigod foi convidado para ilustrar a cartilha e criou três personagens que levam os jovens leitores a um passeio pela capital baiana.
Para o artista, a cartilha ilustrada é importante porque pode aproximar os alunos das redes municipais dos patrimônios da cidade, que muitas vezes são de difícil acesso: “Quando eu estudava, via os passeios das escolas particulares e ficava doido para ir e na minha não rolava passeio nenhum. Agora, eles (os alunos) podem ter esse contato impresso, vale muito”, afirma Bigod. O próprio conjunto urbanístico do Centro Histórico de Salvador, com seus prédios, casarios e igrejas, foi considerado Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO, em 1985.
Inicialmente, 6 mil exemplares da cartilha foram impressos e devem ser disponibilizados pela Secretaria de Educação. Por opção da própria secretaria, levando em conta a defasagem de idade e série acentuada pela pandemia, o conteúdo poderá ser estendido para outras turmas. “Criamos exercícios em que os alunos podem escrever o que seriam patrimônios para eles, na intenção de não ficar um conteúdo só impositivo”, conta Magnair, que defende que o entendimento sobre bens culturais é subjetivo, uma vez que patrimônio cultural é, por definição, o legado cultural que perpassa gerações.
Já o e-book, que pode ser acessado de forma gratuita aqui, pretende furar a bolha do ambiente acadêmico de estudiosos e pesquisadores, ao mesmo tempo em que sana equívocos sobre o tema. “Muita gente diz que a baiana de acarajé é um patrimônio, mas na realidade o bem cultural é todo o conhecimento envolvido na produção dos bolinhos”, exemplifica Adriana Cerqueira, pesquisadora em Patrimônio Cultural.
A pesquisadora Nivea Santos afirma que o projeto Tessituras cumpre uma função social importante de aproximar o público dos bens culturais do Estado. “Se a sociedade realmente conhecesse os seus patrimônios, talvez os órgãos não fossem tão necessários, o projeto vem para tentar preencher essa lacuna”. Para Adriana, ao conhecer os patrimônios, materiais ou não, as pessoas são capazes de entender suas funções sociais e preservá-los.
O que não se toca
A legislação sobre a regulamentação de bens culturais no Brasil caminha a passos lentos. Durante a década de 30, o poeta modernista Mário de Andrade foi convidado pelo então Ministro da Educação, Gustavo Capanema Filho, para realizar um projeto que desse conta de atender as demandas sobre a conservação e preservação dos patrimônios brasileiros. Assim, em 1937, foi criado o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN).
Apesar de a Constituição de 1988 abordar a questão patrimonial, só em 2006 o governo estadual instituiu normas de preservação e estímulo à preservação dos patrimônios. Ainda mais tarde, em 2014, o município de Salvador colocou em vigor uma lei que pode ser acionada para tombar e registrar bens de interesse público. Diferentemente do que acontece com os bens materiais, que são tombados, os bens imateriais culturais, como festas e ofícios, são registrados pelos órgãos competentes.
Nivea Santos conta que, devido à pandemia, o registro está mais lento. O processo começa quando alguém da sociedade civil se mostra interessado e procura o IPAC, o pedido de registro é analisado e a partir daí um complexo processo de investigação é iniciado. Com a presença de historiadores, geógrafos e técnicos, é realizada uma verdadeira imersão etnográfica, composta por visitas, entrevistas e elaboração de um dossiê que segue para aprovação ou não de um comitê especializado.
Como o processo depende de investigação e muitas manifestações e festas populares estão suspensas por questões sanitárias, a lista de pedidos de registro cresce e essa parte do trabalho segue suspensa. Hoje, apenas o Samba Junino e a Festa de Iemanjá estão devidamente registrados como patrimônios imateriais de Salvador.