2º Chá da Diversidade discute as identidades de gênero na Escola de Dança
Por João Bertonie
Travestis, transexuais, transgêneros. Essas pessoas quase sempre marginalizadas pela sociedade foram levadas nesta segunda, 19 de maio, ao centro da discussão sobre identidade de gênero promovida pelo 2º Chá da Diversidade, o evento de maio do programa Ufba em Paralaxe, promovido pela Pró-Reitoria de Assistência Estudantil (PROAE), que mensalmente se propõe a atacar preconceitos e discriminações negativas.
Desta vez, o encontro teve o apoio do Grupo de Pesquisa em Cultura e Sexualidade (CUS), do Grupo Gay das Residências (GGR), juntamente com o Coletivo Kiu, grupo universitário focado na diversidade sexual.
O auditório lotado por uma plateia formada por muitos travestis e transexuais, mas também por homens e mulheres cisgêneros, como são chamadas nos estudos de gênero as pessoas que nasceram com a mesma identidade de gênero atribuída ao sexo biológico, o evento transcorreu no mais completo tom de diversidade.
A mesa-redonda, por outro lado, foi composta por mulheres trans, à exceção do professor Djalma Thürler, coordenador do CUS. Coube a ele mediar a discussão sobre a descolonização das identidades de gênero, com enfoque na perspectiva das pessoas trans, assunto espinhoso numa “sociedade que até pouco tempo preferia silenciar sobre essa parte da população”. “É preciso pensar nisso não como uma questão de gênero, mas acima de tudo de seres humanos”, declara a psicóloga e professora brasiliense Jaqueline Gomes, a primeira a tomar a palavra.
DESPATOLOGIZAÇÃO E EMPODERAMENTO Durante as pouco mais de duas horas do evento, discutiu-se também a despatologização das pessoas trans e a necessidade de dar espaço social a elas, enxergando-as como sujeitos dignos de fala. “Existe uma luta mundial contra a indústria médica para que a transexualidade deixe de ser vista como uma patologia”, diz Jaqueline. Em todo o mundo, a França é o único país que não considera a transexualidade um transtorno de gênero. Segundo a psicóloga brasiliense, para empoderar as pessoas trans é necessário subverter a “lógica centenária de assistencialismo”, superando a “naturalização do pensamento, que ignora os processos históricos e outros fatores”.
Empoderamento, aliás, foi uma palavra bastante repetida durante todo o chá. O termo –uma tradução livre da expressão inglesa empowering – tem um significado, de fato, poderoso para a comunidade LGBTT, em especial para as pessoas trans, talvez o seguimento mais historicamente silenciado desta parte da sociedade. A transfeminista paulistana Hailey Kaas, pensando nisso, afirma: “Nós, como ativistas, temos que pensar na importância dessas microações transfeministas. Temos que olhar o corpo da pessoa trans não como objeto de fetiche, de estranhamento, mas de empoderamento”.
UM BEIJO PRAS TRAVESTIS Dar poder às pessoas comumente discriminadas é uma urgência sentida também pelas travestis. Quem abordou isso foi Keila Simpson, diretora da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e primeira travesti a ocupar a presidência do Conselho Nacional LGBT. Segundo ela, o sexismo ainda é muito presente em nossa sociedade; Keila afirma que, como ainda temos a imagem de “homens dominantes” e “mulheres dominadas”, as travestis sofrem porque é visto como inadmissível que um homem tenha preferido viver a experiência feminina. Há ainda a implicação de que a maioria das travestis recorre à prostituição para viver, algo moralmente errado no pensamento normativo. Isso se dá, segundo a ativista, pois “por encontrar somente espaços fechados, [as travestis] são jogadas para as margens”. “A travesti, na imagem do homem na rua, é um ser abstrato, que ninguém conhece”, assim Keila explica por que há certa preferência por elas no mercado sexual em relação às pessoas trans* que já passaram pela cirurgia de readequação sexual.
LIBERDADE TRANS* Como as travestis, todas as identidades de gênero e sexualidades devem ser respeitadas. Essa é a fala principal de Viviane V., transfeminista e pesquisadora do grupo Cultura e Sexualidade da UFBA. Referenciando Malcolm X., a ativista fala da repressão de várias instituições sociais, que impedem as pessoas de exercerem suas liberdades e autonomias identitárias. “A identidade de gênero é uma experiência profundamente sentida pelas pessoas, que pode ou não coincidir com o sexo biológico. As instituições médicas nada têm a ver com isso”, declara, firme, Viviane. A pesquisadora ainda refletiu sobre a necessidade de respeitar os nomes sociais das pessoas trans*, uma questão que remete diretamente à dignidade dessa população. “Dos três milhões dos já inscritos no Enem 2014, 50 são pessoas trans* que pediram para usar seus nomes sociais. Essa, portanto, é uma fatia relativamente significativa da sociedade, a que devemos nos atentar”. Porém, ainda mais relevante que o respeito de terceiros aos nomes sociais das(os) transexuais é o autorrespeito, o amor próprio. Nas palavras de Viviane, as pessoas trans* devem trabalhar sua autoestima, seu zelo por si próprio, para conseguirem sobreviver e ser felizes num mundo normativo. “Talvez eu nunca seja chamada pelo meu nome social pela minha mãe, mas isso não pode ser um empecilho para a minha felicidade”, afirma.
SOB MEDIDA Quem ficou no evento até o final, pôde contemplar um homem em trajes femininos, interpretando “Sob medida”, de Chico Buarque, e dançando de forma provocante. Era Milla Kokaiev, persona de Ricardo Andrade, que enfeitou a Escola da Dança pelo restante da noite com sua presença rica e colorida.
O baiano de Juazeiro vê em sua personagem uma forma de fazer política, de mexer com a cabeça das pessoas e fazê-las enfrentar paradigmas e preconceitos. Um homem, de barba e voz grave, num corsê e saião, a cantar os versos de Buarque (“traiçoeira e vulgar / sou sem nome e sem lar / (…) sou cria da rua”), é realmente algo que chama a atenção. E é esse o objetivo de Ricardo; causar estranheza e fascínio, mostrar o quão múltiplo e plural alguém pode ser. “Tem tudo de mim nela e um pouco dela em mim”, diz Ricardo sobre Milla. Há as mais diversas formas de lutar contra o preconceito e descolonizar identidades de gênero, e Ricardo o faz sempre que se maquia e se põe no palco.
“O maior sofrimento da transexualidade não é o preconceito, é o desamor consigo mesmo”