Cidadão do mundo e, agora, de Ondina: a força por trás da Avenida Milton Santos

2022 marcou a mudança da antiga avenida Adhemar de Barros, atual Milton Santos, em Salvador; simbologia por trás desta troca são trazidas à tona

Por: Inara Almeida

Praça Castro Alves, Avenida Jorge Amado, Rua Gregório de Matos. Estas são algumas das homenagens a grandes figuras baianas espalhadas por Salvador. Era motivo de estranhamento para muitos que a avenida Adhemar de Barros – a principal de Ondina e endereço mais emblemático da Universidade Federal da Bahia – levasse o nome do ex-governador de São Paulo, que jamais teve relação com a capital baiana.

Agora, após a sanção do projeto de lei do vereador Augusto Vasconcelos (PCdoB),  Milton Santos é o mais novo nome da  famosa “avenida das gordinhas”. A conquista é fruto de mobilizações de vários movimentos, sobretudo nas redes sociais, e um extenso abaixo-assinado, com cerca de seis mil assinaturas, que tornaram possível a troca de nomenclatura. Christiane Gurgel, jornalista por trás da campanha no Instagram, ficou surpresa com o rápido acolhimento das pessoas à ideia.

“Fiz um release, mandei para jornais, portais e fiquei muito surpresa com a adesão. Em menos de 24 horas já tínhamos mais de mil assinaturas na petição, isso sem precisar gastar um centavo, trabalho voluntário e adesão completamente orgânica”, conta.

A comunicadora, que gerenciou a página junto à estudante de Arquitetura da UFBA Laura Baqueiro, enfatizou a importância do apoio de figuras como a historiadora Lília Schwarcz e o reitor da UFBA, João Carlos Salles, que gravaram vídeos defendendo o projeto, veiculados no Instagram da campanha. A imprensa local também teve grande participação na divulgação da proposta de lei e da campanha nas redes.

Milton Santos, conhecido por ter expandido as fronteiras da geografia, é considerado um dos cientistas negros mais importantes da história. Nascido em Macaúbas, interior da Bahia, Milton fez de Salvador e da Universidade Federal da Bahia sua casa por muitos anos, até, durante o período da ditadura militar, partir para o exílio na França, onde viveu durante 13 anos.

O intelectual fez história e desenvolveu inúmeros estudos sobre o funcionamento das cidades e a globalização, contribuindo para identificar problemas e soluções que se apresentam nesta estrutura. Dentre as diversas honrarias, Milton Santos tornou-se o primeiro e único, até então, latino-americano a receber o prêmio internacional de geografia Vautrin Lud, além do título honoris causa por mais de 19 instituições.

NÃO É DE HOJE

Mas, afinal, quem foi o precursor da ideia para a mudança do nome? Bom, o que se sabe é que, há 10 anos, alguém já havia pensado nisso. Kin Guerra era estudante do Bacharelado Interdisciplinar em Artes da UFBA e tinha 19 anos quando criou, em 2012, um abaixo-assinado para tentar alcançar este feito. Na época, Christiane chegou a assinar o documento. 

“Fazia uma longa viagem até a faculdade, vinha de Lauro de Freitas e descia na Adhemar de Barros, estava descobrindo aquele espaço com um olhar de jovem. Até que, em um típico almoço de domingo, questionei quem seria Adhemar de Barros e descobri que não tinha nada a ver com Salvador. Foi aí que pensei que a avenida deveria se chamar Milton Santos” conta Kin.

O estudante, que estava completamente imerso na obra do intelectual baiano, criou uma página no Facebook e uma petição online, que recebeu milhares de assinaturas. O projeto, na ocasião, também foi apoiado pela UFBA e por boa parte da população, saiu em jornais e virou projeto de lei pelo vereador Gilmar Santiago (PT), mas não foi para frente.

“Para uma sociedade, dez anos é muita coisa. Em 2012, Salvador estava passando por outras coisas, o cenário político era completamente de oposição. E tem uma questão fundamental, que é a presença das redes sociais. Na época, eu nem tinha smartphone, agora é outro mundo”, Kin explica sobre o porquê do projeto de lei não ter passado.

Kin Guerra, que disse ter ficado muito emocionado com a aprovação da mudança este ano, reitera a importância de dar atenção às demandas da juventude e não fazer pouco caso de pequenas revoluções. “Além de ser educativa, já que muita gente não sabe quem é Adhemar de Barros e Milton Santos, mostra a força das demandas populares”, explica.

Honrar a memória e legado de Milton Santos também não é novidade no Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Milton Santos (IHAC) da UFBA. De acordo com Luis Augusto Vasconcelos, diretor do instituto, a obra de Milton Santos é muito “aderente” ao projeto dos cursos interdisciplinares. “Nós dialogamos muito com Milton Santos, como, por exemplo, para pensar sobre ‘que globalização é essa?’ ‘Que contexto geopolítico é esse que faz com que haja concentração de riqueza?’ Além de problematizar a própria educação e quem somos nós nesse processo”, esclarece.

MAIS QUE UMA PLACA

As letras brancas em destaque nas placas de fundo azul atestam: Avenida Milton Santos. No centro do percurso, há uma grande foto dele, que foi professor, cientista, geógrafo, advogado, escritor e um dos maiores intelectuais do século XX. Milton Almeida dos Santos cursou Direito na UFBA e, mais tarde, atuou como professor de Economia na instituição, que tem o seu maior campus localizado na avenida, uma homenagem repleta de simbolismo.

É o que reforça Nina Santos, jornalista formada pela UFBA e neta de Milton Santos. “Você trocar uma figura de dentro do regime militar por uma que foi perseguida e precisou deixar o país por conta disso sem dúvidas é uma simbologia bastante marcante, especialmente nesse momento em que a democracia brasileira se apresenta tão frágil.”

A comunicadora se mostrou feliz por saber que a memória e obra do avô estão sendo lembradas e homenageadas pelas pessoas. Nina espera que essa mudança simbolize algo maior, não apenas uma lembrança, mas a luta pela democracia e reforça que, com certeza, era o que Milton Santos iria querer. “Ter uma avenida Milton Santos é uma simbologia importante, mas a gente não pode parar por aí. Não necessariamente significa que as ideias que ele defendeu, que a forma dele ver o mundo continuará sendo replicada e estudada”, conta.

Mais do que uma memória, a avenida Milton Santos é carregada de representatividade. É o que explica o professor de Geografia do IFBA Henrique Andrade. “Um jovem negro que sai da Bahia e se torna um cidadão do mundo. Falar de Milton Santos tem uma dimensão de representatividade. A lembrança de que a educação salva”.