“A coisa tá preta na FACOM, mas continua branca na mídia”, afirma jornalista Suzana Varjão
Evento organizado pelo grupo Etnomídia reuniu importantes nomes do jornalismo brasileiro para discutir questões raciais
Por Rafaela Fleur
O auditório da Facom ficou lotado na última terça-feira, 21. O motivo? O evento “A coisa tá preta na FACOM!”. Organizado pelo Grupo Etnomídia, como forma de celebrar seus 20 anos de existência e debater o papel das relações raciais na mídia, o encontro trouxe a jornalista Maíra Azevedo – conhecida pela personagem Tia Má – , Suzana Varjão, ex coordenadora em Brasília da ANDI Comunicação e Direitos – Agência Nacional dos Direitos da Infância e Juventude, e o jornalista e pesquisador Edson Cardoso, por quatro anos assessor especial de Luiza Barros, ex-ministra da Seppir – Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial.
Não é novidade que a discriminação racial está presente em todas as esferas sociais e foi exatamente o racismo institucionalizado – principalmente dentro de ambientes jornalísticos – o foco da primeira mesa de discussão. Mediado por Miriam Cachoeira, estudante de comunicação e assessora da Comunidade de Povos Tradicionais de Terreiro da Terra Vermelha, o debate começou com Suzana Varjão. Contando sua trajetória, que tem mais de 17 anos, Suzana revelou que, no início, ela nem sequer se reconhecia como mulher negra e vítima de racismo. “O professor Fernando Conceição, que na época trabalhava comigo, foi quem me esclareceu o que estava acontecendo”, contou. E completa: “quando eu era mais nova e meus amigos falavam que eu era negra, achava que era xingamento e me sentia ofendida”, confessa.
Desde que criou o Movimento Estado pela Paz, devido ao assassinato de uma colega de trabalho, Suzana tem se dedicado ao estudo da violência urbana. Com o avanço das pesquisas e a análise de 45 veículos jornalísticos, percebeu que as chances de sobrevivência humana aumentam e diminuem de acordo com a cor da pele. “A temática do racismo me escolheu”, declarou. A jornalista discutiu principalmente a forma com que o racismo está enraizado nos discursos, o que pode ser percebido nos mapas de violência realizados por jornais. “Negros são só números, quase nunca existe uma preocupação em identificar e contextualizar essas pessoas”.
Humor para assuntos sérios – Resultado da união perfeita entre jornalismo, mídia e anos de militância, um dos maiores méritos de Tia Má é discutir com os milhares de seguidores em suas redes sociais questões importantes, como gênero, objetificação da mulher e discriminação racial de forma leve e sempre muito bem humorada. “Militância também é feita com afeto”, pontuou.
Assim como acontece com outras milhares de mulheres pretas, também já tentaram ofender Maíra falando da cor da sua pele, a diferença é que graças à sua formação – social, acadêmica e familiar – isso nunca foi ofensa. “Outro dia apareceu uma criatura me chamando de preta, gorda e nordestina, achando que fiquei ofendida e que ele descobriu a pólvora”, contou. “Se quiser, venha na periferia que a gente faz um workshop de como ofender alguém, porque isso pra mim é elogio”, completou, aos risos.
Tia Má também falou sobre o quanto é importante não se afastar da realidade em que se vive por conta do ambiente acadêmico. “A universidade tenta nos retirar do ambiente periférico e acabamos reproduzindo discursos que também nos oprimem”, assegurou. Para exemplificar, citou as piadas feitas com a festa anual “Salvador Fest” e o pensamento restrito de muitos estudantes em relação aos telejornais policiais. “O primo de uma amiga estava desaparecido e foi graças a um deles que ele foi encontrado”, relatou.
Atualmente, Maíra faz parte da equipe do programa Rede Globo, “Encontro”, apresentado pela jornalista Fátima Bernardes, e relata que já a chamaram de “esquerda de Iphone” por conta do lugar que ocupa hoje. “De Iphone ainda não, amor! É de Android!”, respondeu. Para ela, “revolução não se faz com pedra e com pau” e é mais do que importante que pessoas como ela ocupem determinados lugares.
Após abordar também a solidão da mulher negra, o machismo sofrido por elas e a baixa auto estima de muitas, afirmou que o principal para negros que escolheram o jornalismo como profissão é se questionar de que forma é possível combater o racismo institucionalizado. “Tia Má, para além de ser um personagem, é um atestado de que a gente pode criar a nossa forma de dizer o que tem que ser dito”, afirmou.
Etnomidia
Com 20 anos de existência, o grupo Etnomídia foi o responsável pela organização do “A coisa tá preta na Facom”. Sob a coordenação do professor Fernando Conceição, o principal objetivo do grupo é a pesquisa e o estudo da construção do discurso étnico-racial nas mídias. Sendo o primeiro grupo acadêmico do país a incentivar esse tipo de reflexão e debater sobre os impactos dos discursos midiáticos, os grupos étnicos históricamente discriminados (afrodescendentes negros, indígenas, judeus, asiáticos, ciganos, etc.) são os grandes objetos de estudo.
Composto por pesquisadores, graduandos, pós-graduandos e profissionais de mídia e de outros campos das Ciências Sociais, desde 2007 está vinculado ao Pós-Cultura – Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade/UFBA.
Com a ausência do cantor MC Beijinho e da especialista em mídias sociais, Sueide Kintê, coube a Edson Cardoso a responsabilidade da segunda mesa do evento. Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo e Mestre em Comunicação Social pela Universidade de Brasília (UNB).
Autor dos livros Bruxas, espíritos e outros bichos; Ubá; Gravatá da Fonte e Negro, não: a opinião do jornal Irohìn, Edson falou principalmente sobre a falta de pessoas negras ocupando espaços nas diversas estruturas de poder do Estado. “Isso começa desde a proclamação da república. O código penal vem para criminalizar a cultura negra, a religião, a capoeira. Ela deixa claro para os negros que não querem eles como parte dela”.
Cardozo também falou sobre como o racismo já está estabelecido na sociedade, o que implica na identificação automática das pessoas que serão perseguidas socialmente. “Não existe autodeclaração e nem hétero declaração, elas são implicações necessárias”. Para ele, nenhuma autodeclaração pode ser feita sem antes saber como você é percebido pelos outros. E brincou: “só existem duas situações em que isso existe, quando um louco afirma ser Napoleão Bonaparte no manicômio e quando a Xuxa Meneghel diz ‘eu sou negra’ em uma ilha deserta e o eco responde ‘sou negra’”.