Congo e Brasil: a dança iniciática do Kiebé-Kiebé como tradição e prática

*Por Vanice da Mata

Até 29 de novembro Salvador abriga a primeira exposição internacional da dança-teatro iniciática Kiebé-Kiebé, da República do Congo, indicada para ser tombada como patrimônio imaterial da Organização Cultural, Educacional e Científica das Nações Unidas (UNESCO). Como parte dos esforços do governo congolês em divulgar suas manifestações culturais e estreitar laços com o Brasil, o professor Theóphile Obenga, da Universidade Marien Ngouabi, conversou com o público baiano sobre o Kiebé-Kiebé, em conferência, na primeira semana de setembro na sala Carybé do Museu Afro-brasileiro (MAFRO) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), no Pelourinho.

Dividiram a mesa com o professor Obenga o presidente da Associação de Filosofia do Congo-Brazaville, Camille Bongou; o prefeito de Cuvette, um dos 12 departamentos que formam o país e onde a dança possui seu maior número de dançarinos, Pierre Cíbert Iboko Onangha; Lydie Pongault, conselheira da Cultura e Artes da Presidência do Congo Brazzavile e diretora do Museu da Bacia do Congo, cuja coleção Kiebé-Kiebé é formada por mais de 150 peças; e Graça Teixeira, coordenadora do MAFRO.

A ideia de escolher Salvador como primeira cidade fora do continente africano a receber a exposição internacional, segundo Lydie Pongault, foi devido aos laços sanguíneos existentes entre o Brasil e a República do Congo. Negros africanos também vieram desta região para servir de mão de obra ao regime escravocrata, vigente entre os séculos XVI e XIX no Brasil. Aqui, foram identificados como bantus – grupo étnico que congregou angolanos, moçambicanos, tanzanianos e congoleses.

O Kiebè-Kiebè O professor Obenga contextualizou a palavra Kiebé-Kiebe a partir de sua definição, abordando o contexto e a ideia que ela guarda. No Congo Brazzaville a palavra kiebé, sozinha, não tem qualquer sentido. Pelo recurso da duplicação, o sentido da palavra é reforçado no seu melhor ou no seu pior, segundo o historiador. No caso de kiebé, faz-se uma aproximação com a palavra ikiebe, que significa “mexer ou agitar alguma coisa com muita graça”, Kiebé-Kiebé, então, deve ser compreendida como “a arte da dança por excelência”. É uma dança-teatro iniciática dos povos Mbochi (reconhecidos pelos saberes nos campos da agricultura, pesca e no manejo com ferro) e os Koyo.

Autoridades africanas falaram sobre as nuances do Kiebé-kiebé. Foto: Vanice da Mata
Autoridades africanas falaram sobre as nuances do Kiebé-kiebé.
Foto: Vanice da Mata

Esta prática guarda duas dimensões: a sagrada e a profana. Possui regras, interditos e indicações que precisam ser rigorosamente seguidas. Aos ngàngà, ou homens iniciados, cabe a ida ao bosque sagrado, denominado kìnda, liderados pelo Ndumbè – uma espécie de guia que intermedeia a relação dos iniciados com os ìpombì (profanos, que são os homens não iniciados, mulheres e crianças). O Ndumbè é responsável por pressentir ou ‘fazer sair’ os àfia ou “figurinas” (pronuncia-se ‘figurinhas’) que serão conduzidas pelos iniciados até a comunidade; estes, agora, vestidos sob tecido de ráfia e portando a figurina revelada em meio ao ambiente da floresta. Portarão, através da dança, uma fala que vem do tempo, muito cara à vida da aldeia.

As figurinas podem representar desde sentimentos a ideias como beleza, maldade, poder, caráter, etc, passando também pela representação de pessoas que já desencarnaram e que, de algum modo, foram importantes para a comunidade durante sua existência (tenham sido estas mulheres, homens ou mesmo crianças). A figurina de Marie Oyee, por exemplo, uma mulher conhecida por sua beleza, atravessou fronteiras e, hoje, está presente na dança iniciática dos departamentos de Cuvette, Plateaux e Cuvette-Ouest. Cada uma destas regiões possui suas próprias figurinas que, por sua vez, expressam a subjetividade de cada povo. “O Kiebè-Kiebé é como uma representação do drama da existência. As figurinas são emblemas de qualquer ideia que há na sociedade. É um momento de transmutação. É importante notar que a memória desta dança está marcada na memória da aldeia”, destacou o professor Obenga.

Nuances O momento mais importante da celebração é quando os iniciados passam a dar vida e significado a uma espécie de ”inconsciente coletivo”, e os afiás são postos em movimento pelos ngàngà, guiados sempre de perto pelo Ndumbè. “Ali, o povo vivencia a sua emoção”, sentencia o professor. Por outro lado, há diferentes ocasiões para a execução do Kibé-Kiebé, como em momentos fúnebres, de divertimento, sanção, ou mesmo de mistério. Segundo o prefeito de Cuvette, Pierre Cíbert Iboko Onangha, “o Kiebè-Kiebè possui, inclusive, uma nuance esportiva, que é a da competição. “A prática requer grande esforço e movimento por parte dos iniciados. É necessário girar sobre o próprio eixo durante algum tempo, com as costas curvadas, sem deixar o longo vestido de ráfia tocar o chão a uma distância média de 4cm. Ali, percebe-se a melhor dança, quem tem mais resistência em executá-la, além do reconhecimento da máscara perfeita”, explicou. Onangha referiu-se, também, ao que chamou de ‘caráter esotérico’ da dança. “Com a figurina da serpente, por exemplo, a roupa pode subir tranquilamente de 40 a 50 metros”, testemunhou o  gestor.

Exemplo de figurina. Foto: Vanice da Mata
Exemplo de figurina.
Foto: Vanice da Mata

Choque identitário Na conferência, a plateia foi majoritariamente formada por estudantes da área de humanas de diferentes graus de formação, pesquisadores, ativistas de organizações negras e fiéis do candomblé. Estes, em grande parte, questionaram, por algumas vezes, se aquilo sobre o que os integrantes da mesa estavam falando não se tratava de uma manifestação religiosa. Todos os porta-vozes do Kiebé-Kiebé, naquela tarde, foram categóricos em negar tal afirmativa. Na República do Congo, não se trataria de religião.

Diante de tal resposta, um contingente da audiência soteropolitana parece ter saído dali contrariada. “Quando vem o Congo Brazzaville, eu pensei de vir uma coisa ‘mais África’. Entendi o Kiebé-Kiebé como Egum, que é uma coisa invisível. É bacana, novo para nós, mas eu esperava mais. No final foi tudo muito técnico. Quando eu ouço falar de África eu venho grande, eu quero me engrandecer. Eu vim atrás disso, e fiquei no meio do caminho”, desabafou Negra Jhô, cabeleireira soteropolitana reconhecida nacional e internacionalmente, e hoje uma das mulheres mais representativas dentro da cultura negra na Bahia.

Tata Raimundo Konmannanjy, presidente da Associação Cultural de Preservação do Patrimônio Bantu (ACBANTU), foi categórico: “ainda restam muitas dúvidas entre lá e cá. Essa travessia do Atlântico tem que acontecer de novo para eles saberem o que nós somos ainda, porque eles estão muito baseados em livros que escreveram para a gente ler. Agora nós temos que escrever o nosso livro verdadeiro. O professor (Obenga) constatou, aí, que a religião não é algo tão importante para a cultura, mas aqui no Brasil, para nós negros, temos que colocar a religião pelo motivo de nós termos a liberdade de cultuar e de cultivar nossa ancestralidade. E isso é algo muito importante”, afirmou Konmannajy. Fluxos e refluxos à parte, o fato foi que a imagem refletida no espelho não foi de todo reconhecida pela audiência. Talvez, porque nem tudo é necessariamente religião, mesmo; talvez, pelo fato de que a voz, naquela tarde, à mesa, foi a de representantes políticos, autoridades ìpombì, e não exatamente dos próprios ngàngà, os dançarinos guardiões do mistério.

Plateia na conferência sobre o kiebé-kiebé. Foto: Vanice da Mata
Plateia na conferência sobre o kiebé-kiebé.
Foto: Vanice da Mata

 

SERVIÇO

O quê: Exposição Internacional  Kiebé-Kiebé

Quando: em cartaz até o dia 29 de novembro, de segunda a sexta.

Horário: das 9h às 17h.

Local:  Museu Afro-Brasileiro  –   Largo do Terreiro de Jesus s/n, Prédio da Faculdade de Medicina da Bahia, 40026-010 Centro Histórico Salvador, Bahia, Brasil

Entrada franca.

Informações – 71 3283-5540

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