FLICA é palco de protestos no penúltimo dia do evento
A Festa Literária Internacional de Cachoeira foi campo de conflito ideológico e manifestações sociais
*Por Gustavo Salgado – voluntário da Agenda Arte e Cultura
Protestos marcaram a oitava mesa da FLICA (Festa Literária Internacional de Cachoeira), no último sábado, 26. Um grupo composto por militantes de movimentos sociais e ativistas autônomos ocupou o espaço de debate do Festival, por volta das 11h30 da manhã, impossibilitando a continuidade de algumas mesas de discussão previstas para o dia. O protesto exigia que os convidados Demétrio Magnoli e Luiz Felipe Pondé não participassem das atividades da FLICA, além da exigência de uma leitura pública de nota de repúdio à organização do evento. As reclamações foram interpretadas por parte do público como um ato de censura ao evento.
Com a proposta de promover debates a partir do contraste de ideias, a Festa Literário Internacional de Cachoeira trouxe convidados com linhas de pensamento e opiniões divergentes. Como foi o caso da oitava mesa, ocorrida no dia 26, em que Demétrio Magnoli e Maria Hilda Baqueiro Paraíso dialogariam acerca da temática “Donos da Terra? Os Neoíndios, Velhos Bons Selvagens”. Maria Hilda criticou o modelo do bom selvagem imposto pelo sonho nacionalista de unificar o país, ao mesmo passo que esmagava as diversidades étnicas, fracasso que resultou em revoltas e lutas durante séculos. E durante a fala de Magnoli, que respondia que não se deve pensar do ponto de vista histórico, mas das narrativas políticas dos índios no Brasil, várias pessoas dispersas na plateia começaram a gritar “racista!”, iniciando um protesto.
Pele, carne e sangue Iniciada com insultos a Magnoli, a manifestação contou com pessoas que pintaram seus corpos, simbolizando o sangue perdido pela população de origem africana ao longo do regime escravocrata e seus desdobramentos. Cartazes e militantes gritando palavras de ordem estiveram ao lado de parte do público que, aderindo à causa, ergueu pedaços de papel com os dizeres “sou/fui cotista”, em resposta ao posicionamento de Demétrio Magnoli contrário à política de cotas raciais. Uma cabeça de porco decepada, posicionada e exposta em meio ao palco também compôs o cenário da oitava mesa do festival literário.
A organização do evento buscou chegar a um acordo com os militantes, tentativa que só obteve êxito mais tarde naquele dia. A continuidade do debate em curso foi impossibilitada, e a organização retirou o convidado do recinto com a justificativa de garantir a sua integridade física.
Questão antiga, sentimento contido A manifestação contra a presença de Demétrio Magnoli não foi motivada pela sua argumentação durante a FLICA, mas por declarações anteriores contra a política de cotas para negros e outros posicionamentos considerados racistas. Quando questionada, em meio ao protesto, sobre a sua opinião desse ato inserido no contexto das Jornadas de Junho de 2013, Hilda Maria afirmou que considera “uma expressão de um sentimento contido” e que os manifestantes “sentiram-se provocados e reagiram”. Ela lamentou a não continuidade da mesa, mas afirmou que “cada um utiliza as armas que possui”.
Em resposta ao mesmo questionamento, Magnoli disse que “isso não é o povo vindo às ruas. É um pequeno grupo organizado, ligado a partidos políticos, que age feito os fascistas na Itália do Mussolini, como as vozes dissidentes do regime [ditatorial militar] que espantavam os outros durante a peça Roda Viva. No poder, [os ativistas presentes na FLICA] fuzilariam os seus opositores. Só agem vandalizando o debate”, opinou.
A organização do evento considerou o ato legítimo, característico dos regimes democráticos, e permitiu a atividade dos militantes em respeito à liberdade de expressão. A assessoria de comunicação do Festival admitiu que considerava a possibilidade de reações negativas por parte do público devido à presença de Magnoli e Luiz Felipe Pondé, apenas não eram esperadas com a proporção que tiveram.
O grupo que realizou a manifestação não possui nome ou líderes, e foi organizado especificamente para realizar a intervenção na FLICA. Composto por militantes de movimentos negros e feministas, ativistas autônomos, estudantes e membros da comunidade cachoeirana, declarou exigir uma postura menos colonizadora da Festa Literária Internacional, evento considerado por eles elitista, cobrando um maior direito de fala à população que, ainda de acordo com o grupo, estaria destinada basicamente às atividades braçais, como o setor de limpeza.
Sem intermédio de representantes, todas as pessoas que desejaram participaram de uma reunião com um dos curadores do festival, Emmanuel Midard. As exigências de não participação dos autores Demétrio Magnoli e Luiz Felipe Pondé (cancelando a mesa das 19h), assim como a leitura de uma nota explicando os motivos do protesto ao final da mesa das 14h foram atendidas.
O público que assistiu à oitava mesa ficou dividido entre concordar ou desaprovar a manifestação social, opiniões que iam de considerar a iniciativa uma censura ao direito de fala, a considerar um reflexo de um processo de opressão social. Como uma proposta de reflexão, no contexto de um festival literário ao uso exagerado da palavra “fascismo” ao longo do dia – tanto para caracterizar Magnoli como os ativistas – , o escritor Joca Reiners Terron defendeu que “inventar palavras novas é ‘problematizar novos problemas’. É preciso dar o devido peso às palavras. Nacionalismo é, além de artificial, perigoso. ‘Quem somos e como queremos nos ver?’ é uma questão premente”, refletiu.