Um guia dos mochileiros da galáxia otaku
Saiba mais sobre os habitantes da galáxia otaku, quando as narrativas ultrapassam os limites das próprias histórias e tornam-se parte do dia-a-dia
*Por Gustavo Salgado
Você já ouviu falar em otaku? A expressão é utilizada para caracterizar o fã de produtos culturais japoneses como animes (animação gráfica), mangás (quadrinhos) e músicas, por exemplo. Mesmo assim, só ouvir uma música japonesa, ou ler um mangá não torna uma pessoa necessariamente otaku, ela precisa se afirmar dessa forma. Dentro do já vasto universo da Universidade Federal da Bahia (UFBA), a Agenda Arte e Cultura entrou em contato com algumas dessas pessoas que vivem em um mundo onde a ficção encontra a realidade e as narrativas transbordam as barreiras das mídias audiovisuais e se misturam às histórias pessoais. Eles, os otakus, são facilmente encontrados em eventos e festivais de cultura japonesa, até mesmo em algum shopping center ou em livrarias da cidade.
Vinícius Oliveira, 21, é estudante do quarto semestre de Engenharia Química da UFBA e teve o seu primeiro contato com a cultura popular japonesa através do mangá Cavaleiros do Zodíaco, por volta dos seus dez anos. Nessa idade conheceu também séries como Harry Potter e O Senhor dos Anéis, e o gosto pela cultura nipônica e pelas histórias que remetem à Idade Média se transformou em hobby – ou “vício”, como indica o próprio universitário – que requer um orçamento mensal para ser sustentado.
Oliveira via muitas pessoas fantasiadas com os trajes da saga Harry Potter, principalmente nas pré-estreias dos filmes, e queria participar desse contexto, mas não conhecia amigos que o acompanhassem. Em 2009, quando cursava o 2° ano do Ensino Médio, começou a encontrar outras pessoas que tinham interesses semelhantes aos seus e compartilhavam do mesmo universo. A partir daí encomendou, em 2010, uma fantasia da série e passou a utilizá-la em 2011 em eventos geeks e otakus (fãs de cultura pop japonesa, quadrinhos, séries televisivas, vídeo games, histórias medievais, entre outros elementos que compõem a galáxia das narrativas audiovisuais contemporâneas para além da tradicional literatura).
Oliveira valoriza os cosplayers (costume players, ou costume roleplayers, expressão que denomina a representação de personagens a caráter) pelo tempo de dedicação à confecção dos trajes, que pode demorar meses, e pelo estudo de representação das personagens, e acredita que “o bom de Harry é não precisar ser o protagonista para poder participar do universo Harry Potter”.
O estudante ressalta ainda que “muitas pessoas se referem [aos animes, animações japonesas] como se fossem desenhos, cartoons [desenhos animados americanos destinados ao público infantil], e não são. Pessoas encaram como imaturidade, mas para mim é apenas entretenimento”. Ele relatou que já foi alvo de intolerância por parte de um internauta que, após um encontro de cosplayers em um shopping center de Salvador, publicou ameaças aos integrantes desse grupo cultural acusando-os de representar uma juventude corrompida e desmoralizada.
Vinícius Oliveira foi ganhador de uma competição do maior evento de cultura geek e otaku da cidade de Salvador ao transmitir em um vídeo sua coleção de animes, mangás e vídeo games e expressar o seu envolvimento com esse universo e suas linguagens. Quando questionado se considera tudo isso uma forma de arte, a teatralização e representação das narrativas de mangás e animes, disse não se preocupar muito com essas definições: apenas procura se divertir.
Estilo de vida – Para Gabriel Oliveira, 20, graduando do segundo período de Sistemas de Informação, a cultura otaku vai além de um hobby e torna-se parte de sua vida. Ele começou a ter contato com o universo da cultura japonesa aos 15 anos no IFBA (antigo CEFET). Seu Ensino Médio era integrado com o técnico e na época ele tinha que passar o dia todo no colégio. Já gostava de jogos de computador, mas acabou conhecendo esse universo da cultura japonesa através de amigos que viviam a mesma rotina e que compartilhavam do assunto.
Gabriel Oliveira se interessou e procurou mais sobre os animes, os mangás, e assim foi criando uma “paixão pela cultura japonesa”, como descreve. Para ele, ser cosplayer é algo novo: mesmo já tendo participado de eventos de cultura japonesa, nunca tinha vivido a experiência.
“O primeiro que fiz foi nesse ultimo Anipolitan [realizado no final de novembro de 2013 em Salvador], e foi uma experiência bastante enriquecedora pra mim, no sentido de vivenciar um personagem de um game que eu adoro. Me vi na pele do protagonista, e vivi todo o assédio que ele poderia sofrer se fosse de verdade. Ver e ouvir todas aquelas pessoas gritando ‘Leon, Leon’ (protagonista de Resident Evil 4) e pedindo pra tirar foto, elogiando o cosplay, foi bastante motivador”, conta o estudante, que diz enxergar o universo de animes e mangás como um estilo de vida: “Uma simbiose do que você curte com o que você vive. Esse universo está intrínseco no meu cotidiano, com as pessoas com quem me relaciono, pra mim essa é uma personificação de um estilo de vida que só os otakus conhecem de verdade”, relata Oliveira.
Maturidade literária – Lorena Carvalho, estudante da UFBA do quarto período de Engenharia Química, fala que o seu envolvimento com a cultura pop japonesa começou desde muito cedo. “Pra valer, a partir da segunda série [2002], aos sete anos de idade, mas já assistia antes desenhos japoneses na tevê aberta. Na sétima série [2007], após terminar o anime Naruto comecei a ler o mangá, o que me levou a outras séries”, analisa Lorena em retrospectiva.
O primeiro evento de cultura pop oriental de que participou foi a Anisorvetada, em 2007. “O maior evento ao qual eu já fui foi o Anibahia, em 2008, no qual eu fui cosplayer de Hinamori, de Bleach [série de anime e mangá]. Foi o único cosplay que fiz, era fácil de fazer e a pessoa não era tão estranha”, conta. Lorena gostava de ver os desfiles, tirar foto com outros cosplayers, mas hoje em dia não vai mais a esses eventos. Apesar disso, a estudante frequenta festivais anuais de cultura japonesa, e afirma: “há uma grande diferença entre eventos de cultura japonesa e de cultura pop oriental”.
Quanto à sua relação atual com o mundo otaku, Lorena diz que hoje lê muito mais mangás e vê muito mais animes do que antes. “Apenas não sinto mais tanta vontade de ir aos eventos, gritar com meus amigos e levantar plaquinhas ‘free hugs’. Há uma diferença entre uma criança empolgada com mangá, anime e uma pessoa mais velha que se preocupa mais com enredos e histórias”, aponta, considerando-se uma leitora mais amadurecida hoje. E completa: “quando criança eu lia e gostava mais de conteúdo hollywoodiano, agora leio de tudo. [Mangá] é como literatura “normal”: há literatura infantil, mais madura, adulta, erótica… Há histórias simples ou complexas”. E garante: continua gostando da cultura otaku, mas diz não se dedicar mais por falta de tempo.
Universo compartilhado – Eles vivem no meio de nós e costumam se comportar como nós. E as vezes deixam a imaginação fluir e dão vida aos seus personagens favoritos. É comum encontrá-los em eventos de cultura oriental, mas não estranhe se encontrar um cosplayer na fila do pão. O universo otaku só é realmente compreendido por aqueles que compartilham dos mesmos gostos e estilo de vida.