“Há muita gente que nos conhece, nós é que os conhecemos pouco”, diz coordenador do Latitudes Latinas
Em entrevista à Agenda Arte e Cultura da UFBA, Carlos Bonfim falou sobre as riquezas culturais da América Latina e o costume que se tem de distinguir o Brasil do restante da região.
* Por Sophia Morais – voluntária da Agência de Notícias Ciência e Cultura
“No Brasil, ainda ouvimos as pessoas falando ‘o Brasil e a América Latina’, como se o Brasil não fosse parte da América Latina”. Em entrevista à Agenda Arte e Cultura, Carlos Bonfim, doutor em Comunicação e Cultura pela USP e coordenador do programa de extensão da UFBA Latitudes Latinas fala sobre o surgimento do Latitudes – que inclui extensão e pesquisa -, a relação entre as fronteiras culturais latino-americanas e a construção das ideias dos brasileiros sobre as culturas de nossos vizinhos, além da riqueza cultural da região. A conversa aconteceu no âmbito do encontro Veramérica, promovido pelo Latitudes Latinas e realizado entre os dias 21 e 23 de Agosto, na UFBA e no Pelourinho. O grupo de Bonfim também promoveu, entre os dias 20 e 22, o PensarAmérica, que abordou os pensamentos dos latino-americanos Milton Santos e Rodolfo Kusch.
Confira a conversa:
Agenda Arte e Cultura – Como surgiu o Latitudes Latinas e a partir deste o Veramérica?
Carlos Bonfim – O Latitudes Latinas é, de maneira objetiva, um desdobramento da minha pesquisa de doutorado, no programa de integração da América Latina na USP. Antes, havia feito o mestrado no Equador e passei seis anos lá, onde trabalhei com temas relacionados às culturas latino americanas.
No Equador eu tive um programa de rádio dedicado à música e à cultura brasileira, trabalhei com cursos sobre a cultura brasileira. Ao voltar para o Brasil decidi continuar a pesquisa – e uma série de trabalhos relacionados à América Latina – porque lá eu tive contato com uma série de obras e autores, e percebi que são pouco lidos ou eram pouco trabalhados aqui. Então trabalhei isto durante o doutorado e, quando terminei, iniciei este projeto de extensão que hoje se chama Latitudes Latinas. Ele é o projeto macro, e inclui um grupo de pesquisa – dedicado à interculturalidade e à América latina, e uma série de ações.
Temos o festival Latitudes Latinas, e um programa de rádio que é transmitido pela Rádio Educadora FM de Salvador, e pela Educativa FM de Maceió. O programa é disponibilizado no site e tem um portal onde há acesso a uma série de outros projetos afins, textos, vídeos, uma série de informações relacionadas a esse entorno latino-americano.
Dentro destas ações a gente está fazendo o Veramérica, que no ano passado teve um festival com um recorte sobre as culturas afrodescendentes na América Latina. Trouxemos isto pra Salvador e este ano estamos fazendo esta versão do Veramérica, que é também este esforço de trazer pro Brasil o resultado de diferentes pesquisas, artistas e pesquisadores que fizeram um mapeamento da arte contemporânea na América Latina. São jovens artistas, jovens pesquisadores que encontraram colegas em outros países, trouxeram algumas coisas da obra, e a gente está difundindo isso, aproveitando pra conversar sobre isso, como é que os artistas e o público se veem nas obras.
Agenda Arte e Cultura – O projeto convida o expectador a expandir o olhar para o cenário artístico-cultural da América Latina. Quando a sua visão foi despertada neste sentido?
Carlos Bonfim – No meu caso, aconteceu uma coisa curiosa. Minha graduação foi em Letras – estudei espanhol -, e ao estudar espanhol, comecei a ter contato com colegas de outros países de fala hispânica, e invariavelmente, acontecia uma coisa: comentavam sobre certos eventos e festas e me perguntavam “e no seu país, como é?”. E eu comecei a sentir a necessidade de me perceber latino-americano neste sentido. No Brasil, ainda ouvimos as pessoas falando – mesmo as que trabalham com essas questões, com essas temáticas – “O Brasil e a América Latina” como se o Brasil não fosse parte da América Latina. No meu caso, foi meio que natural, comecei trabalhando com língua e literatura espanhola, fui tendo este contato, mas, sempre muito interessado nas outras expressões artísticas, e daí foi muito fácil passar das expressões artísticas pra reflexão mais teórica. Nós temos mais de um século de pensadores que vieram se debruçando sobre as questões das culturas dessa região. E com um interesse natural, senti que na medida em que fui encontrando interlocutores que tinham o mesmo interesse, esta rede foi se ampliando e assim a gente chegou tanto ao Veramérica quanto ao Pensar América.
Agenda Arte e Cultura – Qual a real importância de se conhecer o âmbito cultural latino, e de quebrar o estigma geralmente entranhado no brasileiro, na construção da nossa identidade cultural?
Carlos Bonfim – Sempre olhamos para outras culturas, de um modo geral, a partir de estereótipos, de clichês. Do mesmo modo que um alemão pode olhar para um turco, um italiano pode olhar para um imigrante armênio. Acontece aqui, por exemplo, entre os estados, existem estigmas e estereótipos, eles são muitas vezes resultado de desinformação. Creio que aí está uma importância fundamental, que a gente se conheça, à medida que dialogamos conhecemos o outro, e isto é também um exercício de se perceber neste processo, de nos percebermos latino-americanos. No caso do Brasil, há muitas pessoas que trabalham com essa temática e falam de Brasil e América Latina, como se o Brasil não fosse América Latina. Eu acho que existe sim uma necessidade de ampliar um pouco esses espaços de diálogo, para superar esta incompreensão mútua que temos. Agora, o que acontece é isto: da parte dos nossos vizinhos, há muita gente que nos conhece, nós é que os conhecemos pouco.
Agenda Arte e Cultura – Que outras iniciativas promovem essa aproximação?
Carlos Bonfim – Em diferentes espaços, temos uma série de iniciativas feitas nas últimas décadas para que este tipo de aproximação ocorra, existem diversos projetos, e o Veramérica também é uma iniciativa que vai nessa direção, e fez convites a projetos similares ao Latitudes Latinas. Fomos encontrando ao longo desses anos diversas pessoas, diversos pesquisadores e artistas que estão muito interessados neste diálogo. Em maneira macro, temos por exemplo a TAL (TV América Latina) e a Telesur, que têm diferentes iniciativas no sentido de promover esta aproximação. A exemplo de um convênio que existe entres as TV’s educativas do continente, de produzirem conteúdo e difundirem-se mutuamente. Outra iniciativa chama-se Voces Del Sur, que é uma iniciativa de rádio, para justamente fazer circular informações de um país para outro, para que deixemos de receber notícias de um país vizinho através de uma agência internacional na Alemanha ou nos EUA por exemplo, e possamos ter um diálogo mais direto.
Agenda Arte e Cultura – O projeto tem muito a ver com a mobilidade entre as fronteiras, e ao mergulhar neste tema, percebemos no meio de todas essas supostas diferenças e particularidades que há muitos lugares comuns entre nós e nossos vizinhos. Qual é a sensação de presenciar de perto este processo?
Carlos Bonfim – Sobre esta heterogeneidade das culturas, acho que esta é uma das grandes riquezas deste continente. O Brasil já vem produzindo há um bom tempo muita arte e muita teoria, muitas obras artísticas, uma produção já muito grande de autores e artistas, pesquisadores que procuraram refletir sobre a heterogeneidade deste país. É o que percebemos também em diversos outros países, e quando você fala do continente latino-americano, creio que está aí uma das grandes riquezas. Nós temos muitos pontos em comum, mas justamente temos muitas diferenças, e esse é o “grande barato”. Creio que o que pode interessar a todos nós é perceber que ainda há muito a ser descoberto, muito pra ser aprendido neste diálogo com os nossos vizinhos. No caso do Latitudes Latinas a gente acompanha isso de maneira mais concreta a partir das artes, e este é um espaço muito interessante. Há dois anos estive na Bienal de Arte do MERCOSUL em Porto Alegre, e o tema era justamente Fronteiras, que é um tema que vem atraindo a atenção de diversos artistas, de diferentes expressões, não só nas artes visuais, mas na literatura e na música.
Fronteira tem um sentido muito amplo, o que é uma cultura de fronteira de quem vive mesmo na fronteira física de um país e outro, e quem vive em fronteiras porque vive em trânsito entre culturas. Isto é uma coisa muito interessante porque desconcerta muitas das nossas certezas. Fomos educados em estabilidade, em coisas mais fixas e estáveis, e é muito interessante, um prazer se sentir desestabilizado, tirar do eixo algumas coisas em que a gente sempre acreditou. Tem um risco também, porque isso às vezes assusta, você construiu um mundo cheio de certezas e de repente vem um alguém, com uma outra cultura, um outro pensamento e te desestabiliza diante disso. Lançar-se a esse risco é também se lançar a uma oportunidade única de aprendizagem.