Qual limite entre a crítica e o linchamento virtual?
Entenda o que é a cultura do cancelamento e quais seus pontos negativos e positivos
Por Laiz Menezes*
De Anitta a Ciro Gomes, diversos famosos, e até desconhecidos, já foram sentenciados pelo tribunal das redes sociais. A cultura do cancelamento, que consiste em rejeição total e abandono de apoio ao escolhido da vez, é vista por muitos como uma forma de “cortar o mal pela raiz” na internet. Qual o limite, no entanto, entre a crítica e o linchamento virtual? Quando o “cancelamento” se torna uma seleção válida de quem deve ser admirado e rejeitado ou uma cômoda impaciência em entender um erro e aceitar a existência do aprendizado? A Agenda conversou com profissionais para entender melhor o que é esse fenômeno e quais as suas contribuições positivas e negativas na sociedade.
Atuante na área dos Direitos Humanos, a jornalista e dramaturga Mônica Santana conta que compartilha de um entendimento de que as pessoas vivem uma parte significativa de sua existência dentro da internet. Segundo ela, a rede social é um espaço de mediação das relações, da construção de vínculos afetivos e do entendimento político de cada um e, por isso, não cabe mais separar a vivência física da virtual. Mônica afirma que nesse período atual, é produzida e vendida uma imagem, um discurso e modo de ser no meio digital que transforma os usuários em produtos a serem vendidos, daí vem a lógica do cancelamento.
“Se eu consumir uma mercadoria e ela não me satisfizer por alguma razão, eu cancelo o consumo dessa mercadoria. Assim, da mesma forma, nós pensamos que também podemos fazer isso com as pessoas. Estabelecemos que se determinada pessoa supre uma expectativa minha e por algum motivo ela deixa de agradar, eu vou cancelá-la”, explica.
O julgamento, o apedrejamento e o chegar às vias de fato que aconteciam nas ruas, segundo a jornalista, hoje em dia ocorrem no ambiente online. Mônica acrescenta que isso não é um fenômeno novo, o que muda é a plataforma e o alcance de quem vai opinar nas questões, já que as pessoas não resolvem mais seus problemas no ambiente íntimo, tudo agora ganha o espaço de exposição e, ao mesmo tempo que as coisas são expostas, elas são canceladas.
“Nisso, nós excluímos a possibilidade de aprendizagem e de conciliação. Nós deixamos de compreender que o ser humano erra. As nossas relações podem ser descartadas, estamos eternamente em uma farmácia, um mercado, em que todos os indivíduos podem ser apagados da nossa vida facilmente e substituídos. Não somos uma máquina perfeita, nossas opiniões não vão estar sempre corretas e cometemos equívocos. Nós podemos ser cancelados, todos podem”, conta a dramaturga.
A advogada Thais Menezes afirma que os prejuízos da cultura do cancelamento são os danos à honra e à imagem dos usuários que sofrem com o linchamento, além de, muitas vezes, invadir uma área que é restrita à atuação das polícias e órgão envolvidos, como a Polícia Civil e o Ministério Público, o que pode causar até mesmo interferências indesejadas no procedimento investigativo. O clamor popular, segundo ela, nem sempre é benéfico, especialmente porque existe um procedimento legal a ser adotado em casos de denúncias. “Nas ocorrências de pedofilia, por exemplo, crimes que envolvem a imagem de pessoas menores, o cuidado deve ser ainda maior, já que certamente os danos reversos à criança ou ao adolescente, são mais drásticos, diante do trauma que é causado”, explica.
A advogada explica que existem diversas normas que podem proteger o usuário que sofre com o senso de justiça na internet. Há a reparação por danos morais, por exemplo, que é quando ocorre a violação da manifestação de pensamento. Ou seja, as pessoas são livres para expor sua opinião, caso não façam apologias a crimes, e podem recorrer à Justiça ao sofrer com ameaças nas redes sociais, geradas por esse “cancelamento”.
Na esfera legal, pode ser atribuído o crime de injúria, ferir a honra e a dignidade de alguém, ou calúnia, acusar falsamente uma pessoa de um fato tipificado como crime, quando identificado o responsável pelo ato cometido online. “Também é possível fazer a reparação por meio da Lei dos Crimes Cibernéticos e o Marco Civil da Internet, que disciplinam como os usuários devem se comportar na internet. Já em publicações homofóbicas, xenofóbicas, discriminação racial, apologia ao nazismo e pornografia infantil, divulgada por quem participa do banimento ou por quem é repudiado, é possível realizar uma denúncia anônima e acompanhar o andamento da investigação através do site SaferNet”. http://new.safernet.org.br/denuncie.
Ashley Malia, repórter do jornal A Tarde e colaboradora do Pretitudes, projeto voltado para o entretenimento, descolonização e empoderamento da população, acredita que o cancelamento dificilmente funciona para os brancos e que eles só ganham ainda mais visibilidade. Em contrapartida, essa cultura é punitivista e causa danos reais para vidas negras e pode gerar o empobrecimento e esquecimento dessa pessoa. A jornalista conta que ela age diferente na internet por causa desse medo de ser banida, já que qualquer posicionamento errado ou mal interpretado pode gerar o seu “linchamento”.
“Ser cancelada pode gerar efeitos reais para mim, não só no meu trabalho nas redes sociais, mas também no meu emprego físico. Eu sempre pensei muito bem em todas as coisas que eu publico, mas hoje esse cuidado é dobrado”, afirma.
Ashley pensa que existe um ponto positivo no cancelamento para pessoas que cometem crimes reais, como no caso da blogueira Luisa Brasil, que foi explicitamente racista no Instagram e estava ganhando mais visibilidade e seguidores, mas depois de sofrer com esse banimento virtual, a sua conta foi excluída. Ela acrescenta que é um dos pontos negativos é quando usuários, que publicam uma opinião, sem preconceitos, diferente da maioria, são julgados e apedrejados por simplesmente não pensar igual.
A pesquisadora Gabriela de Almeida, membro do projeto Redes Cordiais, que combate a desinformação e o discurso de ódio nas redes sociais, explica, em entrevista à Agenda, que o cancelamento ocorre a partir de uma frase mal elaborada ou de uma opinião baseada em equívocos, em que uma pessoa pode ser atacada de uma forma devastadora, sem que haja o menor espaço para diálogo, revisão de atitudes ou abertura para reflexões mais sérias acerca do que houve de fato.
“Essa cultura caminha lado a lado com o discurso de ódio, quando se nega a aceitar diversidade de trajetórias e de ideias, e se apoia em uma tática de exclusão e julgamento, o que pode trazer consequências assombrosas para a sociedade e pode criar relações cada vez mais tóxicas. Cancelar e silenciar um sujeito não fará com que aquela opinião se dissolva, pelo contrário, pode até mesmo provocar uma onda de desinformação e ódio”, declara.
De acordo a pesquisadora, incentivar o diálogo e a escuta é um caminho para fazer com que as pessoas, em especial os jovens, percebam que suas atitudes têm consequências e que devem ter responsabilidade pelos seus atos. “É de extrema importância entendermos que todos somos passíveis de cometermos equívocos. Nossa existência não pode ser reduzida a um erro. Precisamos estar abertos para acolher quem cometeu deslizes, propondo uma conversa com aqueles que se sentiram afetados diretamente por aquela fala, para que haja um amadurecimento de ideias. A construção coletiva é muito mais saudável e poderosa do que a solitária”, afirma.
Abandonar ou desprezar alguém que cometeu um desacerto, segundo Gabriela, não irá resolver o problema, só jogar uma discussão que poderia ser extremamente rica para debaixo do tapete.