Livro sobre a memória de Salvador é relançado no MAM
*Por Virgínia Andrade
Foi lançada, na última terça-feira (09), como parte da programação educativa da mostra Esquizópolis, a reedição do livro Memória urbana: poética para uma cidade, do arquiteto e professor Isaías de Carvalho Santos Neto. Lançado pela primeira vez em outubro de 2012, no Teatro Castro Alves, durante edição do projeto Conversas Plugadas, o livro é um registro da memória do autor sobre a cidade de Salvador do início do século passado, como foco no período entre os anos de 1910 e 1970.
Nem saudosista, nem nostálgico – Embora seja baseado em lembranças, perspectivas e experiências do escritor, “Memória Urbana” não é um livro biográfico ou saudosista. Segundo o arquiteto, o que há são fatos concretos da ausência de planejamento urbano e ambiental na formação de Salvador. São dez capítulos, compilados em cinco partes que, articuladas entre si, remontam o imaginário do leitor a um momento de desenvolvimento urbano e social determinante para a construção da concepção de cidade atual.
Segundo o professor Isaías Neto, diferente da década de 70, em que Salvador se constituía como uma cidade com linhas definidas, hoje a cidade padece com a escassez de referências. O arquiteto destaca que, em prol da modernidade, houve um movimento de substituição e apagamento do que antes funcionava como um espaço encontros, onde se concentravam os órgãos públicos e administrativos e os serviços típicos das regiões centrais, pelo chamado novo centro empresarial – que engloba regiões como a Av. Tancredo Neves e o Iguatemi – embora reconheça que esse novo lugar não tenha chegado efetivamente a se firmar como central.
Hoje, o que predomina em Neto e, de acordo com ele, em grande parte da população baiana, é um sentimento de despertencimento. “Não me identifico com a cidade atual. Salvador, que teve seu crescimento muito por migração, não criou condições para integrar o migrante, que ficou marginalizado”. É dentro desta perspectiva de despertencimento e estranheza que apresenta o conceito de “esquizópolis” – expressão utilizada inicialmente para caracterizar a condição de Salvador, enquanto cidade bipartida, dividida entre nova e velha.
Em entrevista à equipe da Agenda Arte e Cultura, Isaías Neto falou sobe o livro, sobre a Salvador do século XX e sobre o conceito de “esquizópolis”.
Agenda Arte e Cultura – Professor, como surgiu a ideia de escrever o livro?
Isaías Neto – O livro nasce da provocação de uma aluna. Em certa ocasião ela me perguntou sobre como era a cidade nos anos 70. Perguntou um dia, perguntou outro dia… até que me disse: “você é um google!”. E tomei o comentário dela como um desafio, porque só nesse momento me dei conta de que eu tinha informações sobre a cidade, que, se não publicasse, iriam desaparecer. Na verdade, o que eu sei sobre Salvador não é diferente do que qualquer um sabe, a interpretação, sim, é muito pessoal e precisava ser publicada.
Agenda – Sobre o que ele trata?
Isaías Neto – Trata das transformações pelas quais passou a cidade durante o último século, mas principalmente da grande revolução cultural que ocorreu em Salvador no final dos anos 50. O processo começa com a criação da Universidade em 46, depois o desfile do Quarto Centenário em 49, e todo o processo que resulta na criação do Teatro Castro Alves e das três escolas que revolucionaram Salvador: Música, Dança e Teatro.
Agenda – Quais as suas pretensões em escrever o livro?
Isaías Neto – Eu não tinha pretensão alguma em escrevê-lo, nunca pensei que o faria, inclusive. Não sou escritor, não sou historiador, sou apenas um arquiteto, um cidadão. A ideia inicial era publicar uma pequena memória, pequenas distrações da cidade, com poucas páginas, e presentear meus amigos no meu aniversário. Na medida em que eu comecei a escrever, pessoas ficaram sabendo e o livro começou a crescer. É curioso que, embora eu seja o autor, perdi completamente o controle do livro, que passou a ser um patrimônio que não me pertencia mais.
Agenda – O que mais o agradou no processo de construção do livro?
Isaías Neto – Há duas coisas que, particularmente, me agradam. A primeira é a possibilidade de falar da cidade com gente, pessoas. Ou seja, eu não escrevi a história de algo inerte, sem vida. Eu estou falando de uma cidade habitada por pessoas que dormem, acordam, brigam, se recompõem. A segunda, que no meu caso favoreceu muito, é que eu colei a ela uma história familiar. E, embora não seja um livro biográfico, é a saga emocionante de uma família que viveu a Salvador do início do século XX. É um livro incomum, humano, que fala de Salvador na perspectiva de um urbanista, mas sem ser chato.
Agenda Arte e Cultura – Por que optou por escrever sobre a Salvador da década de 10 à década de 70?
Neto – Porque em 70 para mim termina um processo de transformação. A cidade dos anos 2000 é mais ou menos aquela dos anos 70, apenas ampliada. Ao mesmo tempo, eu estava entrando na Universidade para trabalhar como docente. Então eu resolvi fazer um estudo de lugar dessa época, e recuperar a cidade de hoje, tendo em vista essa transformação.
Agenda Arte e Cultura – De onde parte a expressão “esquizópolis”?
Neto – Todas as transformações que acontecem na cidade a partir do final da década de 70 criam na população um sentimento de despertencimento, de estranhamento, pelo fato de não oferecerem a essa população referências muito claras. Poderia dizer, nesse caso, que a cidade passou por um processo de esquizofrenia, daí a palavra “esquizópolis”. É como se Salvador, por algum motivo, tivesse alterado a sua relação com a realidade. Um exemplo claro disso é que na época que o Centro Administrativo estava sendo construído, existia um outdoor que dizia o seguinte: “Aqui, a Bahia constrói o seu futuro, sem destruir o passado”. Nada mais esquizofrênico do que isso, primeiro porque ninguém constrói o futuro, as pessoas só constroem o presente; segundo porque o passado, queira-se ou não, está destruído, e o que nós temos é só uma memória dele. É importante dizer que esse conceito não é meu. Alguém levantou essa “bola” e eu chutei [risos]. Na verdade, a primeira vez que ouvi essa expressão foi de um amigo, o professor de Arquitetura Chango Cordiviola, enquanto discutíamos Salvador lá pelos idos dos anos 90. Assim como eu, ele também nega a criação do termo. É uma palavra que fica nos escaninhos da vida, hoje, de domínio público.
Agenda – Está em cartaz uma exposição chamada Esquizópolis. Como o sr. avalia o uso das artes visuais para, de certo modo, materializar o conceito?
Neto – Apesar de não ser crítico de arte, acho que a modernidade na Bahia acontece de forma muito tardia, mas vem carregada de características próprias muito fortes, porque ela não é nem apenas uma oposição ao capital, nem é uma postura que propõe novas atitudes frente ao desenvolvimento tecnológico e político. A modernidade na Bahia é, antes de mais nada, um compromisso com a vida. É uma forma muito especial de aventura, a partir de uma arte insólita. Por isso, achei muito interessante e apropriada a ideia de batizar de Esquizópolis uma atividade que tem características artísticas muito peculiares.
Sobre o autor – Arquiteto e professor aposentado da Universidade Federal da Bahia, onde lecionou por 20 anos, Isaías Neto é mestre em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FFCH) da UFBA e doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (FAU/USP). No livro Memória urbana: poética para uma cidade, o autor reúne textos sobre a primeira capital do Brasil, enfocando Salvador no período entre o início do século XX e os anos 70.