“Qual o lugar do branco nessa situação?”: a discussão da branquitude no Brasil
Na visão de pesquisadores, posição identitária de pessoas brancas precisar ser mais debatida no país
Por Ícaro Lima
Considerado crime inafiançável e imprescritível, previsto na Constituição Brasileira desde a sua elaboração, em 1988, o racismo ainda é presente no Brasil. Em meio a tantas lutas, conquistas e dificuldades, há uma linha de pensamento que analisa essa situação a partir da posição social e do comportamento dos sujeitos brancos, ou seja, discute a “branquitude”.
Apesar de haver autores preocupados em discutir a identidade racial branca já por volta dos anos 1950, como Frantz Fanon e Steve Biko, foi em 1990, nos Estados Unidos, que surgiram os primeiros estudos específicos sobre branquitude. A corrente de pesquisa denominada “critical whiteness studies” (estudos críticos da branquitude), que teve como um dos seus principais colaboradores o sociólogo americano W. E. B. Du Bois, é considerada por muitos o ponto inicial dessa discussão.
A Agenda Arte e Cultura conversou com dois pesquisadores que desenvolvem projetos relacionados a essa discussão para entender como se manifesta esse conceito e quais as suas consequências.
‘Postura colonizadora’
Para o professor doutor da Faculdade de Educação da UFBA Gabriel Swahili, a branquitude, baseando-se nos estudos do antropólogo senegalês Cheikh Anta Diop, se traduz numa consciência histórica grupal que racializou características fenotípicas próprias de grupos oriundos do Norte da Eurásia, e a partir da qual vem sendo articulado um sistema de negação, dominação e aniquilação dos povos percebidos como “outros”.
“No Brasil, a melhor definição de branquitude é o nome da marca da farinha e do biscoito ser ‘Dona Benta’, mas quem cozinhava no Sítio do Pica-Pau Amarelo era a ‘Tia Anastácia’”, diz Gabriel, que tem o tema entre os seus interesses de pesquisa e enxerga a produção de trabalhos acadêmicos que tratem da branquitude como algo ainda muito incipiente no Brasil.
Ele considera que pessoas brancas potencializam a branquitude como uma norma a ser universalizada e que isso é uma postura colonizadora que não pode ser aceita. Na sua visão, o que falta é uma reorientação no sentido não apenas de ter consciência sobre a situação, mas de desenvolver atitudes para combatê-la.
Necessidade de discussão
Quem considera que ainda há muito a ser feito em relação ao debate sobre esse assunto é a antropóloga e mestranda em Estudos Étnicos e Africanos na UFBA Amanda Medeiros Oliveira. Ela ressalta que muitos intelectuais já se debruçaram sobre a análise do racismo sem excluir a posição da população branca das perspectivas de pesquisa.
Para a pesquisadora, é importante destacar a identidade racial branca como algo que não é estático nem monolítico, e que age como uma construção social. Ela afirma que, baseado em alguns estudiosos, branquitude significa “poder”, e isso independe de regiões, mesmo no Brasil, um país extenso e diverso. “De certa forma, ela tem poder aqui, e esse poder tem a ver com mercado de trabalho, com a infância, várias questões, mas também com o direito à vida”, comenta a pesquisadora.
Amanda entende que esse ponto deve ser o mais analisado durante a discussão sobre branquitude. “A gente tem que falar sobre ‘poder’ quando a gente fala sobre branquitude, não só sobre o que as pessoas brancas acham, como elas encaram o racismo, mas sobre o poder que elas têm”, defende.
Após um período oferecendo oficinas para falar sobre as implementação das cotas em universidades e sobre a lei que instituiu a obrigatoriedade do ensino sobre a história afro-brasileira, africana e indígena nas escolas, Amanda conta que pôde notar a branquitude como um tema que precisa ser mais debatido no Brasil.
“Acho que foi a partir desse contato com estudantes e professores negros e brancos que eu pude perceber que era necessário falar sobre branquitude desse lugar de privilégio, porque não adianta só falar de pessoas negras como vítimas ou resistente a algo que se diz invisível. A gente precisa localizar essa branquitude e perguntar qual o lugar do branco nessa situação”, relata.
A branquitude no Brasil
Amanda considera que a branquitude no Brasil é baseada em um esforço para manter privilégios de determinada parte da sociedade. “No Brasil, isso é bem interessante porque a gente tem uma branquitude que se recusa a se dizer branca em frente a alguns assuntos. Quando a gente fala sobre raça ou gênero, essas pessoas se recusam a ser brancas no sentido de que elas negam o privilégio que elas têm. Elas negam, não no sentido de possibilitar experiências para pessoas negras e indígenas, mas de sedimentar, segurar seus privilégios”, explica.
A pesquisadora avalia que o debate sobre a branquitude deve ser visto por várias outras perspectivas além das definições de raça. “Mesmo uma pessoa branca pobre, frente uma pessoa negra pobre, tem um privilégio racial que possibilita ela uma mobilidade que pessoas negras não possuem. Então a discussão é muito mais ampla, ela se espalha”, afirma.
A situação apontada pode ser embasada através dos resultados de uma pesquisa do IBGE, divulgada no ano passado, que mostra que os trabalhadores brancos receberam, em média, cerca de 75% a mais do que os pretos e pardos.
O que precisa ser feito
Sobre o que é necessário para que a discussão sobre a branquitude ganhe mais força, Amanda considera que é preciso vê-la como um sistema maior de poder e que envolve questões de dominação.
“É necessário que a gente consiga compreender a branquitude para além da identidade racial branca e das performances raciais de pessoas brancas, mas como um sistema de supremacia branca, ou, como muitas intelectuais feministas negras têm falado, um ‘patriarcado supremacista branco’. É importante colocar a branquitude nesse sentido, que abrange muito mais coisas além da experiência”, diz.
Segundo Amanda, outro caminho necessário é perceber o que a branquitude informa nas pessoas negras, no sentido da desconstrução da performance branca como a ideal, para eliminar o que de colonizador existe em nós.
Quanto às ações que as pessoas brancas precisam tomar, Amanda diz que é necessário que elas sejam de uma forma que expanda o pensamento e que gere atitudes de combate ao racismo.
“Pessoas brancas têm que ler, realmente, pessoas negras. Não só ler porque são pessoas negras, mas porque essas pessoas têm um tipo de conhecimento por causa da experiência que informa outras coisas, que abre outros mundos, que não é limitada por uma pretensão de universalidade. Pessoas brancas têm que trabalhar muito para conseguir pensar e agir de uma forma antirracista”, explica.
E finaliza: “A branquitude tem que se perguntar por que ela precisa de uma ideia de negritude inferior. Porque a branquitude não seria nada sem uma ideia de negritude inferiorizada”.
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