Ocupando a encruzilhada entre mídia e direitos humanos
Intervozes capacita atores sociais nas principais capitais brasileiras para atuarem na luta pelo direito humano à comunicação
*Por Vanice da Mata
O Coletivo Brasil de Comunicação Social – Intervozes, entidade associada ao Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), promoveu em Salvador nos dias 26, 27, 29 e 30 de novembro o ciclo de formação Mídia e Educação em Direitos Humanos. A série de encontros aconteceu em paralelo em quatro capitais brasileiras: São Paulo, Curitiba, Fortaleza e Brasília. O objetivo deste giro nacional é capacitar lideranças e comunicadores integrados a grupos sociais para atuarem como educadores em direitos humanos, tendo como norteador de suas intervenções os conteúdos veiculados por conglomerados de comunicação nacionais. Os representantes nacionais voltam a se reunir em fevereiro, em Brasília, a fim de elaborar e encaminhar sugestões aos meios de comunicação de massa através do Guia Mídia e Direitos Humanos, publicação que se propõe a orientar a atuação de profissionais de imprensa em pautas que envolvam temáticas relacionadas aos direitos humanos no Brasil.
O primeiro bloco formativo trabalhou princípios e definição dos direitos humanos, mecanismos de proteção legais e principais normativas internacionais. O professor de direito da UFBA/ UCSAL, Samuel Vida, destacou o caráter processual e propositivo do universo das leis, quando afirma que “o direito projeta algo que deve vir a existir.” Este caráter propositivo revela a face protagonista dos direitos humanos, o que leva o professor a considerar que “o texto não diz nada porque a alguém vai ser dado o papel de dizer o que diz o texto. Compreender isso é importante porque a gente faz uma discussão sobre direito um tanto ingênua, falando no direito enquanto textos. O que está em cada um destes textos não está dito automaticamente, e não está à disposição de todos”, reconhece. Para Samuel Vida, democratizar o acesso à compreensão destas leis é fator central para o amadurecimento da experiência da democracia no Brasil e para tanto é vital a ‘distribuição’ de “competências interpretativas sobre o campo do direito, e não só distribuir constituições, estatuto da criança, tais ou quais leis”, defendeu.
Dividindo presença na programação na qual o professor Vida fez sua considerações, o professor Adriano Sampaio, representante do Centro de Comunicação Cidadania e Democracia – CCDC , falou sobre o trabalho de que o Centro realiza há 3 anos, monitorando e denunciando abuso dos direitos humanos que programas sensacionalistas baianos fazem dentro das programações de suas emissoras. O Intervozes, além de apresentar o próprio coletivo, compartilhou a experiência bem-sucedida do caso “Direitos de Resposta” quando, entre dezembro de 2005 a janeiro de 2006, 30 programas de uma hora de duração ocuparam a grade de programação da Rede TV!, tirando do ar o programa Tarde Quente, apresentado por João Kléber. O conteúdo veiculado na tv aberta, assistido por mais de 20 milhões de pessoas em seus picos de audiência, explorava o sofrimento humano e desrespeitava ‘minorias’, ao veicular conteúdos de tom racista, jocoso e preconceituoso contra homossexuais, mulheres, pessoas com deficiência, dentre outros grupos, o que respaldou a ação de organizações não governamentais em parceria com o Ministério Público Federal que exigia, dentre outros pontos, direito de resposta às ‘comunidades’ e grupos sociais agredidos. Completando a programação do primeiro fim de semana, a discussão sobre direito autoral e de imagem fez-se presente, além do direto da pessoa com deficiência.
A Bahia foi o único estado que teve a temática racial incluída na formação dos agentes locais. Vilma Reis, socióloga e vice-presidenta do Conselho de Desenvolvimento da Comunidade Negra (CDCN), fez sua sensibilização baseada em larga bibliografia, além de histórias baseadas em sua própria experiência de vida e na de outras personagens negras como a deputada federal baiana Creuza Maria Oliveira , uma das vozes que defendeu a PEC 478/ 2010; e a escritora mineira Carolina de Jesus, autora, dentre outros livros, de Quarto de Despejo (publicação que figura entre as mais vendidas no mundo, traduzida em mais de 13 idiomas). O genocídio da juventude negra e seus impactos na vida de toda uma geração foi outro tema bastante explorado pela socióloga, que qualificou como injustificada a discussão sobre redução da maioridade penal já que, segundo dados apresentados pela palestrante do mais recente Boletim de Análise de Político Institucional produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada-IPEA, apenas 1,7% dos crimes considerados hediondos teriam sido praticados por jovens entre 15 e 29 anos, o que não sustentaria o argumento de que jovens deveriam entrar ainda mais cedo em regime de cadeia.
O publicitário Paulo Rogério, fundador do Instituto Mídia Étnica e do portal Correio Nagô, dividiu a discussão sobre a representação das negras e negros na mídia nacional com Vilma. O empreendedor trouxe experiências bem-sucedidas do mercado midiático étnico norte-americano, como o canal de tv a cabo Centric , e da Black Enterprise, revista que privilegia conteúdos voltados à economia como mercado financeiro, gestão de carreiras, administração, planejamento, sendo os afro-americanos o público-alvo da iniciativa. Ainda no segundo módulo formativo, temas como as representações da mulher e da comunidade de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT) receberam atenção dos participantes.
Para o Intervozes, o compartilhamento de informações desta natureza é fundamental para a conquista de uma mídia brasileira plural. “Numa realidade em que os meios de comunicação têm centralidade na formação de ideias, valores e opiniões, entendemos como fundamental o debate e reflexão permanentes sobre quais os papéis que a mídia pode desempenhar nas questões relativas aos direitos humanos de minorias e grupos sociais historicamente excluídos”, afirma Paulo Victor Melo, coordenador nacional do ciclo de formação Mídia e Educação em Direitos Humanos. O coletivo de comunicação social entende que a mídia no Brasil tem sido mais violadora de direitos do que promotora destes. Ampliar a discussão, articular setores sociais capazes de denunciar violações e de exigir a garantia do direito constitucional à comunicação de todo cidadão brasileiro é papel desta entidade. Desde 2003 ela vem atuando no país a fim de que mais jornalistas sejam capazes de fazer análises conjunturais que expressem novos olhares sobre a dinâmica social brasileira, e que mais cidadãos tornem-se capazes de compreender conteúdos tornados (in)visíveis pela mídia com crescente autonomia e consciência.