QUALISalvador: “A desigualdade interessa àqueles que sempre foram detentores de poder”
A Agenda entrevistou o coordenador do CEAO da UFBA e participante do projeto de pesquisa que elaborou um indicador inédito sobre a desigualdade em Salvador.
Por: Maysa Polcri
A desigualdade socioeconômica, que sempre foi visível na cidade de Salvador, agora pode ser comparada e estudada mais facilmente, graças a um esforço de pesquisa que reuniu cerca de 200 especialistas, sob liderança da UFBA em parceria com a Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e participação da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). O projeto Qualidade do Ambiente Urbano de Salvador, QUALISalvador, distribuiu mais de 15 mil questionários por todos os bairros da capital e elaborou um indicador inédito que norteia o mar de desigualdades em que os moradores da cidade estão mergulhados.
Levando em consideração fatores como desmatamento, aumento da temperatura da superfície, acesso à renda, qualidade do saneamento básico, segurança e insegurança alimentar, o Índice de Qualidade Urbano-Ambiental, IQUASalvador, elaborou uma escala que vai de 0 (qualidade inexistente) a 1 (qualidade máxima) e deu nota para todos os bairros da cidade. Os resultados apontaram que 60% deles possuem ambiente urbano de qualidade regular a muito ruim, enquanto somente 18,7% encontram-se em situação muito boa ou excelente. Além do índice, o QUALISalvador lançou, no mês passado, um livro com os resultados da pesquisa, que pode ser acessado gratuitamente aqui. Ainda são previstos um documentário e o banco de dados originado no processo.
A Agenda conversou com Joilson Souza, um dos participantes da pesquisa e coordenador do Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA (CEAO/UFBA), sobre sua perspectiva do projeto e, mais ainda, sobre as condições histórico-culturais que tornaram a capital baiana tão desigual. Ele foi um dos responsáveis pela escrita do capítulo “Salvador: ecos da escravidão e da desigualdade em uma economia periférica”. Natural de Amargosa, no Centro-Sul da Bahia, Joilson é formado em administração e fez carreira no IBGE, onde trabalhou durante 38 anos, atuando na produção e divulgação de informações. Também foi professor universitário nos cursos de Administração, Psicologia e Publicidade e Propaganda.
1- Como surgiu a ideia de realizar o Projeto QUALISalvador e quais eram os objetivos pretendidos?
No projeto Caminho das Águas, a professora Elisabete Santos estava ligada à Prefeitura Municipal de Salvador, coordenando um setor ligado à construção de indicadores. Ela tinha uma sensibilidade de natureza científica e social, e via a importância de se construir um conjunto de saberes sobre a cidade, que mostrassem a sua evolução. No meio do caminho, por conta das parcerias, foi identificado um conjunto de temas que foram investigados, como qualidade da água e pavimentação do solo. Para todos nós, era importante saber o que havia no entorno, ou seja, se existe um conjunto de ações de degradação sob as águas, quem são os atores? Por isso importava saber as condições sócio-econômicas daquela população.
O Projeto Caminho das Águas resultou em produtos que germinaram e deram base para que esse novo estudo [QUALISalvador] fosse pensado, só que agora para além de falar de alguns indicadores que na época já eram considerados importantes, surgiu a ideia de criação de um índice. O fato de não termos a perspectiva se o Censo de 2020 aconteceria, por conta de toda a instabilidade do país, fez com que a todo tempo nos preocupássemos com um conjunto de indicadores e perguntas que estivessem metodologicamente próximas daquilo que um censo em geral pesquisa. Ousaríamos suprir esse município [Salvador] de dados, na hipótese da falta da fonte primária e mais importante, o censo.
2- Entre dezembro de 2018 e junho de 2020 o QUALISalvador aplicou 15.260 questionários nos mais de 160 bairros da cidade. Quais foram os maiores desafios enfrentados pela equipe? A pandemia prejudicou o trabalho de alguma forma?
Primeiramente, é importante dizer que a quantidade de questionários foi algo muito ambicioso quando pensamos que as responsáveis por isso foram as universidades e não um órgão que nasceu para fazer isso, como o IBGE e outros de pesquisa. Principalmente, tratando-se de um questionário tão grande e multitemático, como era esse. Tudo isso por conta de outra ambição, que era que esse dado pudesse ser desagregado a nível de bairro. Ou seja, pensar em uma amostra que fosse representativa para uma unidade de bairro, levando em consideração que às vezes o bairro é grande, às vezes é muito pequeno, e que essa amostra deve representar as realidades de cada um deles. Isso dito agora parece ok, mas não foi nada simples e, foi exatamente isso, que talvez tenha colocado a pesquisa sob ameaça em algum momento, porque havia um comprometimento com o órgão financiador, a Fapesb.
O que salvou efetivamente a pesquisa, no sentido de viabilizar o custeio da atividade de campo, foi a articulação de atores importantes da própria pesquisa e a Embasa. Isso sem minimizar a importância do aspecto humano, como a coragem dos pesquisadores de irem a campo fazer a coleta. Como a nossa pesquisa precisou encontrar o cidadão em seu lugar de origem e não em um banco de dados pré-estabelecido, foi especialmente difícil por conta da pandemia. Mas, uma rede de interessados [lideranças de bairro, por exemplo] fez contato com pessoas que se candidataram a responder o questionário. Não que tenhamos mudado o critério da seleção amostral, mas isso ajudou a pelo menos dar mais volume à pesquisa, então muito foi feito pelo telefone durante a pandemia.
3- Quais fatores foram levados em conta para elaborar o Índice de Qualidade Urbano-Ambiental de Salvador?
Para gerar um índice, é preciso primeiro ter uma ideia do que já há de iniciativas no mundo acadêmico, para que não seja feito um grande esforço de reinventar a roda. A pesquisa interna foi feita no sentido das referências bibliográficas que já haviam sobre pesquisas e índices. Então, o projeto foi sendo construído a partir dos interesses dos múltiplos atores de departamentos e parceiros institucionais, e cada um deles possuiu um conjunto de informações que ajudariam, ao final, a terem uma leitura interessante sobre cada um dos temas.
Por exemplo, insegurança alimentar é um tema muito amplo, então para o pessoal da área de nutrição interessava a escala Ebia, de insegurança alimentar, pré-existente à pesquisa e que foi trazida como referência. Quando discutimos as estruturas das casas, se buscou também as referências do que o IBGE já fazia, no sentido de termos uma ideia, a nível temporal, se houve ou não evolução nos modos de construção. Então nada foi dissociado de um conhecimento anterior.
4- Em uma escala de 0 (qualidade inexistente) e 1 (máxima qualidade), o Índice de Qualidade Urbano-Ambiental de Salvador, apontou que a cidade apresenta uma variação de 0,34 a 0,83 entre seus bairros, com uma média de 0,54. O indicador prova algo que quem vive na cidade já sabe, Salvador é um território marcado por desigualdades. Quais são os impactos dos fatos históricos para a realidade atual?
É importante dizer que a desigualdade não é um fato novo, ela parece ser algo que funciona, do meu ponto de vista, como um mecanismo. A desigualdade interessa àqueles que foram historicamente detentores de poderes econômicos e materiais. O elemento que mais se liga fortemente ao que vemos em Salvador, tem a ver com um desses fatores da economia: o trabalho. O fato da capital ter sido colônia e um dos players que mais utilizou trabalho escravo, principalmente na região metropolitana, fez com que a mobilidade social dos ex-escravos e seus descendentes fosse dificultada. Isso porque, a desigualdade é esse mecanismo que demonstra resistência dos detentores do poder em não permitir que outros evoluam, pois se isso acontece, passam a valer mais e podem comprometer a expectativa de lucro.
A desigualdade vai ser sempre algo desejado pelas classes dominantes e uma das formas que se usa para mantê-la é considerar que toda iniciativa que busque diminuir a distância entre indivíduos é uma ação comunista. No sentido de fazer crer que o comunista é alguém que expropria, de forma injusta, o direito de alguém em favor de outros que não possuem mérito, o que é falso. Então, essa desigualdade que vemos estruturalmente posta na cidade, apenas demonstra que o mecanismo gerador da desigualdade é eficiente, competente e que historicamente nunca mudou seu sentido. Foi o mesmo que trabalhou contra as cotas nas universidades e que age contra benefícios do Estado para famílias mais pobres, por exemplo.
5- Um dos objetivos do projeto QUALISalvador é fomentar políticas públicas. Quais, ao seu ver, são os maiores desafios para mitigar a desigualdade tão presente na cidade?
A pesquisa tem um sentido que antecede todo o seu esforço: acreditar que conhecer a realidade ajuda e amplia a possibilidade de intervenção. Então temos dois desafios, realizar a pesquisa e defendê-la a todo tempo, no sentido de gerar a percepção do estado de crise social percebido. O fato de existir um dado e ser reconhecido que algo deve ser feito, não necessariamente significa que a política pública tenha efetividade para mudar estruturalmente os elementos causadores da desigualdade. Algumas políticas públicas têm o papel muito mais paliativo de atenuação e não busca de solução estrutural, porque ao pensar dessa forma, você pode ser estigmatizado como alguém que quer pôr sob ameaça aquilo que é entendido como território intocável.