“É indispensável que nós, mulheres negras, sejamos feministas”, diz militante do Projeto Odara

Evento reuniu diversas histórias de luta e superação no auditório da Facom

Por Ícaro Lima

Histórias marcantes e valiosas. Esse foi o principal elemento que fez parte do seminário “Vozes e saberes de Mulheres Negras”, realizado no último dia 29, no auditório da Faculdade da Comunicação da UFBA.

O evento foi marcado por relatos comoventes de quatro mulheres negras que contaram suas trajetórias de vida, marcadas por momentos de lutas e superações, principalmente quando os seus caminhos foram atravessados por preconceitos raciais.

Mediado pela servidora técnico-administrativa da UFBA Cynthia Regina, o encontro serviu para o compartilhamento de histórias incríveis e que encontraram semelhanças nas vidas de várias pessoas da plateia.

União
Quem abriu o debate foi Márcia Nascimento, que, se definindo como uma mulher “negra, feminista e anticapitalista”, contou trechos de sua história, começando pela infância, quando teve as primeiras percepções sobre o que era o racismo. Ela iniciou sua fala mostrando que tem muito respeito pela sua trajetória: “Gosto de me apresentar como ex- empregada doméstica porque foi a minha realidade”, contou orgulhosa.

Integrante do Projeto Odara, que trabalha com mães moradoras de bairros pobres de Salvador que perderam seus filhos de forma trágica, Márcia também apontou os caminhos a serem seguidos pelas mulheres na luta contra o machismo, racismo e outras formas de preconceito.

“É indispensável que nós, mulheres negras, sejamos feministas”, comentou.

Por fim, levantou o debate sobre o acesso de pessoas negras às universidades e como essas instituições precisam se conectar mais com a comunidade externa. “Vamos fazer outras rodas, sair da universidade, conversar com a periferia e a galera. Fazer esse diálogo, trazer o povo!”. Ela ressaltou as mudanças só irão acontecer no momento em que todos se juntarem: “A revolução é a partir da gente, basta a gente se unir”, completou.

Persistência
A professora Auristela Félix também fez parte da mesa. Nascida no interior de Pernambuco, ela contrariou diversas expectativas negativas que costuma ouvir sempre que expunha os seus sonhos. 

Negra, contou como desde pequena percebeu que a cor da sua pele não era bem vista por alguns colegas de escola. Batalhou para entrar numa universidade federal, viajou para outro estado diariamente para concluir seu mestrado, tendo até que dormir na rodoviária da outra cidade, e passou em primeiro lugar num concurso de docente na UFBA. 

Ou seja, cresceu mirando as metas pessoais e só parou quando as conseguiu. E é esse exemplo de persistência que fez questão de transmitir para o público presente, ou, nas palavras dela. “Transforme um não em um sim!”.

Também com um discurso militante, lembrou que ainda há muito a ser conquistado em relação à posição da mulher negra no Brasil e no mundo. “Cada um tem um papel na sociedade, e o papel da mulher negra precisa ter uma postura para que a coisa mude”, disse. 

Mulheres negras na computação
Um outro depoimento foi sobre um assunto que ainda não recebe tanta atenção como deveria: ser mulher, negra e trabalhar ou estudar na área de computação. Quem contou essa vivência foi a estudante de Sistemas de Informação Adriana Silva que, além do relato pessoal, apresentou dados sobre o seu campo de estudo e trabalho.

A área, que ainda hoje é ocupada por homens, já foi um espaço mais equilibrado na questão de gênero. Adriana apresentou dados de um vestibular da UFBA da década de 90, em que houve o ingresso de 14 mulheres para as 31 vagas de um curso da área.

Além do recorte de gênero, Adriana falou sobre como as questões raciais também interferem nesse campo de trabalho. Segundo ela, a ocupação das mulheres negras nesse campo ainda é sinônimo de luta, já que não há incentivo da sociedade para que mulheres cursem faculdades como Ciência da Computação e Engenharia de Sistemas.

Segundo Adriana, a matemática é mal apresentada às mulheres, o que causa uma “invisibilidade” feminina e negra nessa área. Como exemplo, ela lembrou que no ensino médio ela não conhecia muitas garotas negras que sonhavam em ser uma profissional de computação.

“A trajetória de pessoas negras na área é muito solitária. Você entra na sala e não tem ninguém parecido com você”, contou. 

Mas Adriana se esforça para mudar essa situação. Ela faz parte de um grupo de pesquisa na UFBA chamado “Meninas Digitais”, que reúne estudantes negras com o intuito de discutir questões sobre o universo tecnológico moderno e suas consequências sociais. Ela alerta que a sociedade deve enxergar as ferramentas tecnológicas modernas como reproduções que às vezes podem repetir padrões preconceituosos, já que são programados por pessoas. “Essas tecnologias não são neutras. Precisamos pensar como a gente lá”, disse.

Experiência internacional
A última a se apresentar foi a estudante de psicologia da UFBA Aniele Berenguer, que iniciou sua fala ressaltando que sua história de vida tem muito valor.

Aniele lembrou das histórias de vida da mãe e da avó, e destacou o papel delas para sua formação como pessoa.  Em um dos momentos, ela contou sua reação ao saber que foi convidada para palestrar em uma conferência na Universidade Harvard, nos Estados Unidos, uma das maiores universidades do mundo. “Sempre via essa universidade em filmes e séries, pela televisão, então era algo distante da minha realidade”, contou.

Ela foi selecionada em um processo seletivo com milhares de inscritos, e teve a chance de levar um pouco da sua experiência de vida para falar fora do Brasil sobre questões de desigualdade social que acontecem aqui. Para Aniele, a experiência foi única e inesquecível, porém ela ainda se questiona se o público captou bem a sua mensagem. “Para mim foi muito importante falar, mas não sei se fui ouvida”, relatou.

“Nossa história é poderosa e é um erro subestimá-la”, finalizou.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *