Underismo: confira entrevista com os ‘preto chave’ do rap
Coletivo formado por oito jovens mistura elementos de diversos gêneros para cantar vivências pessoais. Eles se apresentam, esta tarde, no FacomSom
Por Ícaro Lima
Salvador sempre foi palco produtor de grandes grupos e artistas. Muitos deles fazem questão de cantar sobre a cidade na qual se formaram, mas nem todos costumam trazer em suas letras algo além dos lados positivos capital baiana. A Underismo não é assim.
O coletivo de rap composto por Alfa, Ares, Dj Moura, Kolx, Nobru, Ponciano, Senpai e Trevo canta Salvador em suas diversas facetas. Por meio de rimas velozes e batidas que surgem da mistura de elementos, o grupo vem, desde 2017, na caminhada de fazer o estilo “Under” colar na cabeça da galera.
Entre várias risadas, visões e copos de café, três integrantes do grupo, Ares, Kolx e Senpai, bateram um papo com a Agenda Arte e Cultura sobre como nasceu e aonde quer chegar a Underismo, que se apresenta no FacomSom 2019, no Largo Pedro Arcanjo, no Pelourinho.
Como os oito integrantes se conheceram?
[Senpai] Todos foram em batalha de rima.
[Kolx] Só Nobru que chegou por Moura…
[Senpai] O nosso antigo produtor morava lá no bairro, eu sempre o via passando em evento de rap, aí comecei a bater um contato, porque lá era o único que curtia mesmo a parada.
E de quem partiu a ideia de criar o grupo?
[Senpai] Foi minha e de Pôncio [Ponciano, outro integrante]. Ele teve a ideia do nome, assim, do nada, e aí eu fui chamando a galera que eu conhecia antes dele. Aí meio que uniu depois desses convites, e a gente está na construção até hoje.
E o nome do grupo, o que significa?
[Senpai] Ponciano chegou com a ideia de criar uma parada assim: unir o nome “underground” e “liricismo”. Aí é essa a união.
[Kolx] Acredito que tenha perpassado o limite de underground e liricismo, tanto que cada pessoa vai dando seu significado. Ares já deu o significado dele, eu tenho o meu, Pôncio tem o dele… Mas a premissa básica é isso mesmo, underground e liricismo.
[Ares] Eu gosto do nome porque fica parecendo um bagulho de religião, por causa do “ismo” [risos]. E aí a galera fica: “que parada é essa?”. Nem consegue pensar que é de “liricismo” ou de outra palavra.
Dá pra ver pedaços de Salvador em quase todas as músicas. O que inspira a fazer esse tipo de letra, contar o cotidiano na cidade?
[Kolx] Eu vou falar por mim, porque não posso falar pelas outras pessoas porque cada um vai tirando do seu nicho de experiência pessoais. Eu sou muito urbano, meu pensamento é totalmente urbano, no sentido de que a única coisa de natureza que eu curto é o mar, porque meu pensamento é totalmente urbano: cinza, prédios, fumaça. O que me inspira em Salvador é esse lado das mais partes mais “urbanizadas”, no sentido de urbanização mais no aspecto soteropolitano, que também tem uma diferença cultural dentro de uma situação urbana. Então minha cabeça de em “R3$idu0$” [Primeiro EP] era alguém andando por aquelas ruas ali do Centro com uma navalha ou uma faca, roupas confortáveis por causa do calor, uma cidade do futuro. Eu imaginava Salvador assim. Tirei meu processo de inspiração nesse bagulho, imaginar Salvador no futuro.
[Ares] Eu acho que, dentro do processo da gente, citar um ponto para inspirar é até difícil porque eu vejo que tem muitas paradas que nós fazemos que é baseado no que nós vivemos. Não tem uma necessidade de “pô, sou preto, vou falar de racismo”. Eu não preciso pontuar que vou falar de racismo porque sou preto e estou vivendo isso constantemente. Eu sou da cidade e vou falar da cidade, não preciso necessariamente pontuar que vou falar da cidade porque estou dentro da cidade, e esse processo de criação que está acontecendo ali dentro.
Um desses traços da cidade, que é bem presente, são as batidas de pagode em algumas músicas. Como surgiu o interesse em fazer essa experimentação?
[Senpai] Eu tava castelando isso esses dias… Na minha vida eu passei rápido por vários estilos de música, e antes do rap eu era pagodeiro, eu dançava pagode, eu vim do pagode [risos].
[Kolx] Eu comecei na música por causa do pagode, batucando, tinha uma banda imaginária, fazia músicas [risos]. E a infância era Chiclete [Ferreira, cantor de pagode] e Kannário [Cantor e deputado estadual], no máximo um Saiddy Bamba. Mas é uma parada que, querendo ou não, a galera começou a notar na música baiana que essa galera também tem uma importância. Apesar de eu achar que nem todo mundo consumia pagode nessa época, mas hoje em dia já entende a importância disso e tenta inserir nas músicas com essa característica de identidade das pessoas.
[Ares] E é barril porque nessa época o pagode já era marginalizado. Hoje que tomou uma mídia com essa ideia de pertencimento e a galera está abraçando algumas coisas ainda, só que no final do rolê. Essa galera que sempre olhou torto, hoje abraça, mas desde sempre a galera estava consumindo. Como a gente disse, nossa infância foi basicamente isso. Eu sempre consumi pagode mesmo estando no interior. Inclusive, pagode, para mim, chegou primeiro do que rap. Até 2011 era muito limitado as pessoas que eu escutava de rap, agora pagode chegava tudo lá.
E vocês pensam em fazer outras misturas?
[Ares] Oxe, demais! Todo dia.
[Kolx] Eu não sei vocês [Ares e Senpai], mas acredito que a gente está passando por uma “bad” porque estamos fazendo shows, com pessoas de outros estados e outras bandas, de outros gêneros, mas a gente também não tem a possibilidade de viver de música ainda. Então você tem as responsabilidade da vida, da rotina, e tem que mesclar isso com a música em segundo, terceiro, quarto plano. E para quem trabalha com outras coisas, não só com a letra, falando no sentido da experimentação, você quer estar a todo momento criando, partindo daquele processo de “pô, tô consumindo esse bagulho e essa parada pode ser muito proveitosa para esse trabalho aqui agora”. Só que a gente não tem como criar o tempo todo. Mas vira e mexe a gente está soltando umas ideias “pô, mano, tem esse elemento do bregafunk, do arrocha, do cinema”. Espero que a gente tenha a possibilidade de criar mais.
[Senpai] A gente se esforça ao máximo para manter os estudos de outras paradas fora o rap, porém, a gente não tem como deixar em primeiro plano. A gente tem que viver para depois tentar fazer rap. Então não dá para estar toda hora experimentando. A gente faz por si, cada um sozinho e depois compartilha, do jeito que dá, o que tá pensando. Mas quando virar primeiro plano vai ser outra parada. A gente mantém estudo para tudo quanto é tipo de música.
Na faixa “$alv4dorP0rnStreet”, do EP R3$idu0$, Ponci diz: “Refletindo sobre reciprocidade, Salvador sem love”. Em qual sentido é essa cidade “sem amor”?
[Senpai] Eu acho que é a forma de sobreviver, que Salvador não é “massagem”. É correria todo dia para se manter. A não ser que você seja playboy, é isso. A gente mesmo tem que estar todo dia na correria para pegar uma parada porque se não a vida trava. É um desafio. É mostrar que a cidade não tem amor para os que são de verdade. A cidade não é da gente, é dos turistas.
No clipe de “Pretx Chave” é bem perceptível o cuidado com a questão visual, a fotografia, as cores. Essa parte estética tem influência direta de alguém do grupo?
[Kolx] Totalmente. A gente é totalmente antenado para estética e padrões estéticos em geral. Enfim, a estética está em tudo. Desde o primeiro dia da Under eu falei: “Mano, eu quero ser a pessoa que vai ficar no visual”. E falando “a gente tem que investir em estética porque na cidade não tem um bagulho organizado assim, de reconhecimento: “pô, aquele bagulho ali é da Underismo, aquele ali é de certa coisa, aquilo é Recayd Mob [coletivo de São Paulo]”. Então quando eu comecei a fazer as paradas e dar a ideia para os caras foi tipo “mano, a gente tem que ter o nosso visual, de ser reconhecido: isso aqui é Underismo”.
Vocês tem dois trabalhos lançados, os EP’s “Resíduos” e “Demotape”. Alguma previsão de um novo projeto?
[Senpai] A gente está montando um DVD e dois clipes para esse ano. Para o ano que vem é segredo…
[Kolx] Segredo o quê, rapaz? É o álbum, fala logo que é o álbum [risos].
[Ares] Vai sair um EP também, e tem as coisas de Kolx, as coisas de Senpai. E aí é a hora que a gente vai trabalhar como coletivo, porque todo mundo vai soltar uma coisa solo aqui e ali, e vai ter uma parte do grupo também.