“Jango: uma tragedya” encerra temporada em comemoração aos 50 anos do Teatro Vila Velha

Por João Bertonie

“Não sou comunista. De chinês tenho apenas os olhos esbugalhados.” O Jango do Teatro Vila Velha, escrito pelas mãos de Glauber Rocha, tem muitas semelhanças e diferenças em relação ao Jango real, deposto pela ditadura sessentista e morto por causas misteriosas em 1976. Essas semelhanças e diferenças foram celebradas no tom barroco do espetáculo “Jango: uma tragedya”, único texto para teatro do cineasta baiano, que, no último final de semana de agosto, finalizou sua temporada de apresentações em homenagem ao cinquentenário do Teatro Vila Velha.

A aura barroca, tresloucada e delirante do texto de Glauber, montado raras vezes, é o grande destaque do espetáculo. Na sessão de sexta-feira, viam-se rostos confusos na plateia, com expressões que iam do fascínio à estranheza. Na peça, encenada por 32 atores sob a direção de Márcio Meirelles, o protagonista João Goulart transa com Carmen Miranda, fuma maconha com Miguel Arraes, dança tango e, num suicídio burlesco, tem seu corpo levado por um grupo de artistas nus, cobertos apenas por uma saia grossa.

50 anos de ditadura

O espetáculo, marcado por um tom fortemente bretchiano, veio em um momento pontual: o Jango-personagem ocupa o palco do Vila exatamente 50 anos após a deposição do Jango-real, promovida pelo golpe militar de 1964. O Teatro Vila Velha, um dos mais tradicionais aparelhos culturais de Salvador, nasceu no ano inaugural do regime, quatro meses depois da tomada militar. Neste ano, também comemora-se o aniversário de 50 anos do filme “Deus e o Diabo na terra do sol”, obra máxima de Glauber Rocha.

Fotos: Natácia Guimarães

“Não foi por acaso que escolhemos esse texto do Glauber. É um discurso político dele, usando o Jango como porta-voz”, diz Yan Britto, ator que dá corpo ao personagem-título do espetáculo. Eduardo Coutinho, também ator na peça, completa: “O Vila sempre foi um espaço de resistência, por isso a importância de ‘Jango’ ser representado aqui”. Ele lembra que foi dentro do Vila Velha – lugar onde encontravam-se artistas, intelectuais e inimigos do regime em geral – que Glauber Rocha foi anistiado, ocasião na qual o Estado pediu desculpas à família do cineasta pela intensa perseguição durante a ditadura.

A ditadura, aliás, é como uma segunda protagonista no espetáculo. Onipresente, inunda todas as cenas, todos os discursos. “O povo é um mito inventado pelos ditadores!”, grita, irônico ou não, um dos personagens a certa altura. A palavra “1964” é gritada ao menos três vezes durante “Jango”, sempre num tom de ódio e dor.

 

 Por todo o mês de agosto, “Jango: uma tragedya” foi a única apresentação que esteve em cartaz no palco principal do Teatro Vila Velha. O espetáculo comemorou os 50 anos do teatro, integrando também a 3ª Bienal de Artes da Bahia.

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